Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra
Por Maria Júlia Lledó
Em tempos de profundas desigualdades sociais e econômicas, de intolerância e preconceitos, o teatro volta-se a investigar, com sua lente de aumento, o passado de colonização para elaboração de possíveis futuros. Nesse processo de revisão histórica, grupos cênicos da América Latina, Portugal e Espanha apresentaram-se no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado no Sesc Santos, em setembro passado. Na abertura do evento, o grupo português Teatro do Vestido tocou nas feridas do país europeu, desde suas raízes coloniais até o apagamento das narrativas de perseguidos e mortos na ditadura (1926-1974) e na Revolução dos Cravos (1974-1975).
Em Viagem a Portugal – Última paragem ou o que nós andámos para aqui chegar, atores dispõem de documentos e imagens – grande parte, originais – para rememorar injustiças, dores e lutas por direitos. Para falar sobre o processo criativo desse grupo que acumula 15 anos de itinerância, a diretora artística e fundadora do coletivo, Joana Craveiro, também atriz, dramaturga e performer, participou de uma conversa com a Revista E, mediada pelo jornalista e crítico de teatro Valmir Santos.
Ouça, na íntegra, ao bate-papo de Joana Craveiro com Valmir Santos
VIAGEM A PORTUGAL
Acho que já estávamos com uma premonição de alguma coisa, não imaginávamos que fosse uma pandemia, mas o espetáculo tem um certo tom quase apocalíptico, porque falamos do fim de uma série de utopias que tem a ver com a nossa própria história [Viagem a Portugal estreou em 2019, mas teve suas apresentações canceladas pela pandemia]. O espetáculo, mesmo aqui em nosso país, problematiza a questão da identidade nacional, a história portuguesa, a história do fascismo, da ditadura, mas também a história de Portugal inserida na Europa, na União Europeia, portanto inserida numa série de políticas europeias que, na verdade, são também políticas de exclusão dos imigrantes.
Esse pequeno país na esquina de um continente velho, com uma história profundamente triste de guerra, de belicismo, de espírito de conquista, de colonização, de colonialismo. Acho que com o nosso espetáculo podemos humildemente dizer que estamos nessa escavação da nossa história. Queremos estar na linha da frente, questionar todas essas coisas sobre o nosso país e sua relação com outros países, como o Brasil.
CHEGAR AONDE?
A primeira cena do espetáculo [Viagem a Portugal], em que os personagens estão a manusear legos, foi a primeira improvisação que a gente fez. O texto surgiu aí. Seria possível construir um mundo novo do zero? Esta espécie de utopia de construção do mundo com aquelas peças de lego…
E a figura dos viajantes continua durante todo o espetáculo a me ajudar, como dramaturga, a manter uma certa linearidade numa história que não tem linearidade. Porque o fato histórico não é linear e depende muito da forma como é contado.
Eu, que ouço centenas de pessoas todos os anos, porque trabalho muito com entrevistas e recolhimento da memória, do testemunho, da história oral, sei que cada um tem a sua versão, e isso me interessa. Esse, então, é um espetáculo bastante crítico e hermético, num certo sentido – a gente até fez um guia de leitura –, porque ele não quer se aprofundar em nenhum dos temas. Ele quer essas camadas sobre camadas. Uma geração que olha com distância para o seu lugar, o seu país, e aquilo que recebe como uma promessa.
Tanto que, no fim, dizemos: “A gente vai conseguir, mãe, não te preocupes”. E a mãe diz: “Poupa, filha. Poupa e tem juízo”, que é uma coisa muito portuguesa. E a gente também questiona:
“Chegar lá? Chegar aonde, mãe?” A mãe como representante dessa geração que nos dizia: “Se tu estudares, tu vais conseguir”. E a gente pergunta: “É sério, mãe? Vamos mesmo conseguir?”.
PAPEL E ORALIDADE
Para mim, o documento é fascinante e eu o entendo de uma forma bem abrangente. Eu entendo mais a ideia de arquivo vivo, do qual faz parte também um conjunto de oralidades e de gestos. E depois, dentro desse arquivo, existe o documento físico escrito ou impresso, que é realmente uma parte muito importante da minha pesquisa e da minha linguagem cênica. Acho que o arquivo pode se tornar repertório através da sua teatralização, da sua utilização na performance. Acredito numa relação orgânica com esses materiais que, na verdade, estão impugnados dessa memória.
Portanto, há uma incorporação no próprio papel. O Teatro do Vestido tem muitos originais: objetos e documentos. E a memória da resistência antifascista e da revolução é uma memória que tem muito papel: o papel dos comunicados, dos panfletos pelos quais pessoas arriscaram sua vida nas tipografias clandestinas. A minha relação com o documento é muito orgânica. Nós passamos horas no Teatro do Vestido a manusear, a aprender a manusear e a encontrar a emoção do manuseamento do documento.
São documentos que adquiri ou que eram da minha família, ou mesmo fotografias que são das famílias dos atores ou de pessoas que nos confiam seus espólios. O documento, para mim, tem esse lado emocional, sou muito apegada e quero preservar esses objetos. Nós temos um projeto de arquivo em Lisboa, com a Câmara Municipal, que vai se chamar Arquivo Vivo do Teatro do Vestido, onde a gente vai pôr tudo isso para as pessoas poderem tocar.
PROCESSO ABERTO
O Teatro do Vestido sempre pôs o processo [de criação do espetáculo] em cena. Isso faz parte do nosso questionamento, desse lado de brincar com o que é verdade teatral, com o que é verdade em cena, quem é que está em cena a falar. Por exemplo, a gente não trabalha a ideia de personagens. Nós partimos sempre da gente, somos nós ali e muitas vezes dizemos o nosso nome, como em Viagem a Portugal. Não temos porque esconder quem somos, porque, na verdade, o ator do Teatro do Vestido é um ator implicado.
Nós todos, juntos, investigamos a história e há uma apropriação dos temas. Não me interessa um papagaio que diz o texto decorado, algo que, é claro, tem o seu mérito e é fantástico. Mas, por exemplo, agora, nesta criação que estamos a fazer sobre um estudante que foi assassinado pela polícia política em 1972, em Lisboa, a gente passou dias a ver documentários, a debater, a ver outros materiais, a ler livros em voz alta. Tudo isso para que todos [do grupo] saibam e se apropriem da história. Temos que nos apropriar para conseguir falar sobre essas coisas, e elas precisam estar gravadas e incorporadas ao arquivo e ao fato histórico. Acho que me interessa muito mais falar sobre esse processo.
JOGO DE CENA
Temos uma relação de profunda cumplicidade com esta entidade chamada público. Ele é um viajante em todos os nossos trabalhos. Também acho que sou bastante exigente com o espectador, porque faço espetáculos muito longos, como Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas [apresentado no festival MIRADA, em 2018], de seis horas, somente eu em cena. Eu confio muito no espectador, até mais do que em mim. Eu confio e o respeito.
Ele, que vai desejar fazer aquela viagem comigo e com a nossa equipe. Normalmente, quando não estou em cena, sempre faço uma introdução ao público. Dou as boas-vindas e agradeço por terem saído de suas casas para vir fazer essa viagem conosco, porque acredito nessa relação de humildade do criador perante o seu público, sem o qual ele não faz nada.
Gosto dessa ideia do espectador emancipado, para quem eu não tenho que dizer tudo, nem ser didática. Gosto mais de deixar perguntas em aberto do que dar respostas. O público não precisa pensar como nós pensamos, até porque nós não estamos a dizer como nós pensamos, estamos a dizer que está tudo por construir.
CONTAR UMA HISTÓRIA
Eu acho que a força do contar nunca vai desaparecer. A força da presença de uma pessoa perante outra contando uma história nunca vai desaparecer, porque essa força é ilimitável, né? O teatro é milenar. E ninguém vai conseguir fazer desaparecer a força desse ato teatral que Peter Brook [(1925-2022) diretor de teatro inglês mundialmente reconhecido] descreve como uma pessoa que observa a outra e que cruza um espaço. Isso não vai desaparecer enquanto houver esta possibilidade de ser humano, essa possibilidade do ato de contar e de recontar.
Por mais claro que seja o fato de que o teatro se transformou, que foi premiado por todas estas linguagens do pós-dramático, da não linearidade, das novas tecnologias, por tudo isso. Porque, afinal, o que nos comove, realmente, no teatro é a força do contar. Quando eu faço O museu vivo (…), estou a conversar com o público, a contar histórias, e isso foi transformador. Essa experiência de estar em frente ao público só com a força das histórias me provou que, mesmo que não tivesse o dispositivo cênico que tenho – o documento -, essa é uma relação mágica.
Ouça, em formato de podcast, a conversa com Joana Craveiro. A mediação é do jornalista Valmir Santos, do Teatrojornal, e a apresentação fica por conta de Adriana Reis Paulics, jornalista e editora da Revista E.
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Neste mês, discutimos a acessibilidade em museus e espaços expositivos. Para além de uma arquitetura acessível, instituições culturais apostam em recursos táteis, auditivos e visuais para ampliar a fruição e acolher públicos cada vez mais diversos. Conheça as políticas de acessibilidade de espaços como a Pinacoteca, Museu do Ipiranga, Museu do Futebol e unidades do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E de novembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que destaca a potência da criação coletiva e processual nas artes cênicas; uma entrevista com Eliseth Leão, que defende que a conexão com a natureza ajuda na manutenção da nossa saúde; um depoimento de Gilberto Gil, que se reiventa aos 80 e compartilha conosco memórias, vivências e inspirações; um passeio por croquis, desenhos de cenografia e fotos de palco que celebram o legado do italiano Gianni Ratto; um perfil de José Saramago (1922-2010), escritor português que faria um século de vida; um encontro com a diretora e dramaturga Joana Craveiro, da companhia portuguesa Teatro do Vestido; um roteiro por 5 espaços no estado de SP adornados por azulejos; um texto inédito da prosadora mineira Cidinha da Silva; e dois artigos que fazem um balanço sobre os 10 anos de criação da Lei de Cotas.
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