Espaços de SP espantam fama de mal-assombrados e ganham novos usos

31/07/2023

Compartilhe:

Conhecidos por histórias de crimes e mistério, imóveis do centro paulistano ressuscitam como espaços culturais e comerciais, mas seguem provocando a curiosidade dos visitantes

Por Luna D’Alama

Leia a edição de agosto/23 da Revista E na íntegra

Casarões, edifícios e até um pequeno castelo localizados no Centro da capital paulista povoam o imaginário coletivo por histórias de crimes e tragédias que, por muito tempo, alimentaram narrativas de mistérios, lendas e também de supostos milagres. Ainda hoje, essas construções fazem parte de roteiros turísticos guiados pela região, geralmente com temáticas de medo e horror. Mas o que muita gente não sabe é que ao menos cinco deles tornaram-se centros culturais, de assistência social, ou aguardam uma reforma para reabrir as portas ao público. Embarque nessas lendas!

CASA DE DONA YAYÁ

Construído no fim do século 19, em uma antiga região de chácaras, esse casarão foi por quatro décadas a residência de Sebastiana de Mello Freire (1887-1961), mais conhecida como Dona Yayá. Ela vinha de uma família rica de Mogi das Cruzes (SP), mas perdeu os pais e irmãos de forma trágica. Ao apresentar sinais de distúrbios psiquiátricos, foi considerada incapaz de administrar os próprios bens e interditada judicialmente. A casa virou uma espécie de sanatório particular e, após a morte de Dona Yayá, houve relatos de fenômenos sobrenaturais, incluindo aparições da antiga moradora. O imóvel foi tombado e reconhecido como patrimônio histórico pelo estado e pela capital paulista. Em 2004, tornou-se sede do Centro de Preservação Cultural (CPC) da Universidade de São Paulo (USP), oferecendo atividades culturais gratuitas. O público pode conferir a exposição Yayá: cotidiano, feminismo, doença, riqueza, também disponível online, além de participar de cursos sobre luta antimanicomial e preservação do patrimônio e da memória, exibições de filmes e apresentações de música e teatro. Em agosto, a programação inclui uma oficina de escrita criativa (5/8, às 10h), aula aberta de yoga (6/8, às 11h), participação na Jornada do Patrimônio (19 e 20/8, das 9h às 17h) e a oficina infantil Brinquedos e brincadeiras (27/8, às 10h).

Rua Major Diogo, 353, Bela Vista. Visitas de segunda a sexta, das 10h às 18h (às quartas, até as 20h), e aos domingos, das 10h às 13h. Grátis.

Antes residência e sanatório particular, a Casa de Dona Yayá se tornou, em 2004, sede do Centro de Preservação Cultural da USP. Marcos Santos
Antes residência e sanatório particular, a Casa de Dona Yayá se tornou sede do Centro de Preservação Cultural da USP. Foto: Marcos Santos

EDIFÍCIO MARTINELLI

Fruto da megalomania do empresário italiano Giuseppe Martinelli (1870-1946), o prédio que leva seu sobrenome foi inaugurado, em 1929, como o maior arranha-céu da América Latina. Construído com cimento rosa oriundo de países nórdicos e inspirado em diferentes estilos arquitetônicos, o “bolo de noiva” – como foi apelidado por Oswald de Andrade (1890-1954) – refletiu o boom econômico da capital e abrigou, em suas primeiras décadas, hotel, cinema, restaurantes, lojas, partidos políticos e redações de jornais. Sua decadência começou na década de 1950, quando virou cenário de crimes, tráfico de drogas, prostituição e clínicas clandestinas de aborto. Em 1975, a Prefeitura desapropriou e restaurou o imóvel, que tinha lixo e esqueletos humanos acumulados no fosso do elevador até pelo menos o sétimo andar. As lendas urbanas ligadas ao Martinelli são contadas por guias, seguranças e ascensoristas, que relatam movimentos incomuns nos elevadores, oscilações da energia elétrica, portas que batem e até uma “loira fantasma” que aparece nos corredores. O prédio, que está fechado para visitação desde 2017, com uma breve reabertura em 2019, hoje abriga órgãos municipais como as secretarias de Habitação, de Subprefeituras e de Urbanismo e Licenciamento. Em junho, a Prefeitura assinou a concessão de quatro andares, do térreo e do subsolo do edifício para um grupo empresarial que deve administrá-lo por 15 anos, com investimento previsto de R$ 71 milhões. Em breve, o novo Observatório Martinelli deve ganhar um museu no 25º andar, além de cinema, loja, restaurantes, espaços de observação, exposições de arte e eventos. Entre as melhorias, também estão previstos um novo elevador e adaptações de acessibilidade. A previsão é que o terraço reabra até o início de 2024, e os demais pisos, até meados do ano que vem.

Avenida São João, 35, Centro.

Cobertura do Edifício Martinelli, que deve reabrir para visitação em 2024. Foto: Wilfredor

CASTELINHO DA RUA APA

Arquitetos franceses vieram a São Paulo para reproduzir, no início do século 20, um castelo medieval no bairro de Santa Cecília. A obra serviu de residência à família Guimarães Reis, dona do antigo Cine Broadway, na Avenida São João. Em seus dias áureos, o castelinho foi espaço de eventos e convívio social. Até que em maio de 1937, dois meses após a morte do patriarca, a mulher Maria Cândida e os filhos Álvaro e Armando foram encontrados mortos, lado a lado. Os crimes nunca foram esclarecidos – o caso virou o livro O Castelinho da Rua Apa (Equilíbrio, 2015), e o lugar ficou abandonado por décadas, ocupado por moradores em situação de rua. Foi nessa época que ganhou fama de “mal-assombrado”, com relatos de fenômenos paranormais, aparição de vultos e manifestações poltergeist (como portas batendo sem vento, torneiras abrindo, agressões físicas e gente sendo empurrada da escada). Tombado em 2004, o imóvel foi restaurado entre 2015 e 2017, e tornou-se sede do Clube de Mães do Brasil, organização sem fins lucrativos que atende a população em vulnerabilidade social. A ONG, administrada por Maria Eulina Hilsenbeck, ocupa também um prédio anexo. De segunda a sexta, das 9h às 15h, o local oferece banheiros para higiene pessoal, serviço para emissão de documentos, telefone, psicólogo e assistência odontológica. Aos fins de semana, há aulas para jovens da periferia sobre políticas públicas na educação. Este mês, o castelinho integra a programação da Jornada do Patrimônio e abrirá ao público nos dias 19 e 20/8, das 11h às 16h.

Rua Apa, 236, Campos Elíseos.

Abandonado por décadas, o Castelinho da Rua Apa foi tombado em 2004, restaurada e transformada em sede do Clube de Mães do Brasil. Bruno Antonio Centeio
Abandonado por décadas, o Castelinho da Rua Apa foi tombado em 2004, restaurado e transformado em sede do Clube de Mães do Brasil. Foto: Bruno Antonio Centeio

CAPELA DOS AFLITOS

Muita gente que passeia pela feirinha do bairro da Liberdade, aos finais de semana, desconhece a história negra da região. Na praça onde hoje ficam a saída do metrô e as barraquinhas de comida e artesanato, funcionava o Largo da Forca até o século 19. Havia também um pelourinho para castigo de escravizados, uma cadeia e um cemitério para enterro de pessoas que estavam à margem da sociedade, como negros, indígenas, prostitutas, não católicos e condenados da Justiça. A construção remanescente desse período é a Capela Nossa Senhora dos Aflitos. No cemitério, foi enterrado o cabo negro Francisco José das Chagas (-1821), do Primeiro Batalhão de Santos. Ele e outros soldados se insurgiram e atacaram uma embarcação portuguesa por terem ficado cinco anos sem salário. Chaguinhas, como era conhecido, e mais um colega foram condenados à morte pelo atentado. A história documentada conta que a corda em que ele deveria ser enforcado se rompeu três vezes (e a população começou a gritar: “Liberdade!”, daí o nome do bairro), mas não houve clemência, e ele acabou sendo assassinado a pauladas. Chaguinhas virou um mártir, santo popular e milagreiro de cemitério. As lendas que o envolvem falam de aparições e velas acesas em sua memória, que não se apagam com chuva nem vento. Segundo a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), o espaço deve ser restaurado, e as obras têm previsão de começar em dezembro deste ano. O local deve ficar fechado por mais de um ano. Além disso, há um projeto para construção de um memorial, já aprovado pela Secretaria de Cultura – mas ainda discutido pela Unamca e pela sociedade civil. A capela vai abrir nos dias 19 e 20/8 para a Jornada do Patrimônio.

Rua dos Aflitos, 70, Liberdade. Travessa da Rua dos Estudantes, altura do nº 52. Aberta de terça a sexta, das 9h às 13h, e às segundas (Dia das Almas), das 9h às 16h, com missas às 12h e às 15h. Terços todo primeiro sábado do mês, às 15h.

Palco de episódios de violência e de milagres no século 19, a Capela Nossa Senhora dos Aflitos deve ser restaurada a partir deste ano. Adriana Vichi
Palco de episódios de violência no século 19 e de milagres posteriores, a Capela Nossa Senhora dos Aflitos deve começar a ser restaurada no fim do ano. Foto: Adriana Vichi

EDIFÍCIO JOELMA

Na manhã de 1º de fevereiro de 1974, um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado provocou um incêndio de grandes proporções nesse prédio comercial de 25 andares, matando 187 pessoas e ferindo mais de 300. Não havia heliponto para resgate aéreo, e 13 pessoas tentaram escapar pelo elevador, mas não sobreviveram – seus corpos, inclusive, nunca foram reclamados por familiares. “As 13 almas do Joelma”, como ficaram conhecidas, foram enterradas enfileiradas no Cemitério São Pedro, na Vila Alpina, zona leste. Há vários milagres atribuídos a elas, placas de agradecimentos e até uma capela no local. Desde que um funcionário ouviu vozes desesperadas gritando em coro, criou-se também o hábito de se deixarem garrafas e copos com água sobre os túmulos, como se esse ato simbólico de combate ao incêndio tranquilizasse as vítimas. O caso virou o filme Joelma – 23º andar (1979), de Clery Cunha, a partir de cartas psicografadas por Chico Xavier (1910-2002), e o livro ficcional Vozes do Joelma: Os gritos que não foram ouvidos (Faro Editorial, 2019), escrito por Marcos DeBrito, Rodrigo de Oliveira, Marcus Barcelos e Victor Bonini. A estrutura do prédio foi preservada, e ele mudou de nome nos anos 2000: virou Edifício Praça da Bandeira. Abriga hoje escritórios de empresas de contabilidade, informática e outros setores. Por conta da tragédia (a segunda maior desse tipo no mundo, atrás apenas do ataque às Torres Gêmeas) e de relatos sobrenaturais, como faróis que piscam no estacionamento, quedas de temperatura, sussurros e aparições, o aluguel das salas é mais baixo que o da média na região. Há, ainda, empresários que preferiram não se mudar para lá ou que foram embora por superstição de que o endereço prejudicaria os negócios. O CEP também ajuda a reforçar as lendas urbanas: 01313-000. A partir do caso Joelma, porém, houve mudanças nos padrões de segurança e prevenção contra incêndios nos prédios da cidade.

Rua Santo Antônio, 140, Bela Vista.

Cemitério São Pedro: Avenida Francisco Falconi, 837, Vila Alpina. Aberto diariamente, das 7h às 18h.

Edifício Praça da Bandeira (antigo Joelma), à direita; túmulos das 13 almas no Cemitério da Vila Alpina. Fotos: Thiago de Sousa/OQTA

Fontes: Thiago de Souza, idealizador do projeto O que te assombra?; Clube de Mães do Brasil; Centro de Preservação Cultural da USP; Eliz Alves, presidente da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca); Guia Negro e Prefeitura de São Paulo.

A EDIÇÃO DE AGOSTO/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

LEIA AQUI a edição de AGOSTO/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.