ETERNO APRENDIZ | A vida e obra do cantor e compositor Gonzaguinha

01/04/2024

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Na corda bamba entre o amor e a dor, Gonzaguinha imprimiu na música brasileira sua fé num futuro utópico 

POR MANUELA FERREIRA

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Tal como um prisma, elemento óptico e geométrico que, embora transparente, é capaz de refletir a luz que o atravessa, a vida do cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha (1945-1991), foi dotada de ângulos distintos. Até a segunda metade da década de 1970, o Brasil conheceu apenas um deles: o do intérprete e letrista denso, sisudo e um tanto sombrio, características que lhe renderam o apelido de “cantor rancor”. No Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira (2006), o verbete dedicado ao artista reforça essa visão, em crítica presente na publicação e assinada pelo jornalista Okky de Souza: “A maior parte do público sempre associou Gonzaguinha às músicas de protesto e de resistência à ditadura militar. Colaborava para isso, além de canções raivosas como “Comportamento geral” (1973), a própria imagem cultivada pelo compositor, carrancudo e dono de um mau humor folclórico na MPB. Mesmo depois que a ultrarromântica “Explode coração” (1969) se tornou um enorme sucesso na regravação de Maria Bethânia [no disco Álibi, de 1978], ele não deixou de encarnar o eterno militante estudantil”, descreveu Souza.  

O processo de reabertura política do país, no início dos anos 1980, fez emergir uma outra faceta do cantor – esta, por sua vez, festiva, vivaz e em atávica sintonia com os ventos democráticos que se aproximavam. É de Gonzaguinha algumas das odes à esperança por dias melhores que embalaram o período, como os versos da cançãoE vamos à luta” (1980). Nela, exaltou: “Eu vou à luta com essa juventude / Que não corre da raia a troco de nada / Eu vou no bloco dessa mocidade / Que não tá na saudade e constrói a manhã desejada”. Uma atmosfera que atesta a força de sua arte engajada, e é revisitada no álbum Viver Gonzaguinha, lançado em 2023, pelo Selo Sesc [Leia mais em Sem a vergonha de ser feliz]. O disco, ancorado no samba, passeia pela vertente mais luminosa do herdeiro do cantor, compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga (1912-1989).  

RAÍZES E FRUTOS 

Pai e filho compartilhavam o amor à música. Mas, antes de ganhar notoriedade como artista, Gonzaguinha atravessou períodos de turbulência originados em seu núcleo familiar – que o acompanhariam em boa parte da vida adulta. Aos dois anos de idade, perdeu a mãe, a cantora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos (1925-1948), vítima de tuberculose. Gonzagão, outra vez casado, distanciou-se do filho pois a nova esposa rejeitava o menino. A criação do garoto ficou a cargo de seus padrinhos de batismo, o casal Leopoldina de Castro Xavier e Henrique Xavier Pinheiro. Gonzaguinha cresceu no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, região central da capital fluminense.  

Uma infância, portanto, fisicamente longe das paisagens sertanejas enaltecidas nos versos do rei do baião, porém repleta do afeto da família postiça. Foi com o padrinho, exímio violonista, que Gonzaguinha aprendeu a tocar o instrumento. A primeira composição, “Lembranças da Primavera”, logo veio aos 14 anos. Na época, o cantor viveu uma das conflituosas tentativas de reaproximação com o pai. Preocupado com os gestos de rebeldia e indisciplina do jovem, Gonzagão enviava o adolescente periodicamente a colégios internos, cuja rigidez aumentava ainda mais os desentendimentos e a hostilidade entre os dois. Anos mais tarde, nos versos de “Odaléia” (1979), homenageou a mãe. “Minha cantora esquecida das noites brasileiras, Te amo / Compositora esmagada dessas barras brasileiras / Te amo.” 

A maior parte do público sempre associou Gonzaguinha às músicas de protesto e de resistência à ditadura militar 

Okky de Souza, pesquisador, no Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira (2006) 

 
ARES DE ALEGRIA 

Foi na cena universitária carioca do final dos anos 1960 que Gonzaguinha deu os primeiros passos da carreira. Estudante de economia da Universidade Cândido Mendes, o artista integrou o Movimento Artístico Universitário (MAU), sediado no bairro da Tijuca.  Formado também pelos compositores Aldir Blanc (1946-2020) e Ivan Lins, entre outros nomes, o grupo recebia, eventualmente, artistas como Milton Nascimento, Ney Matogrosso e Emílio Santiago (1946-2013). A fama do movimento, no entanto, só veio com a participação no Festival Universitário de Música Popular, realizado entre os anos 1968 e 1971, na extinta TV Tupi. Com o sucesso conquistado no evento, seus integrantes apareceriam com frequência no programa semanal Som Livre Exportação, exibido na TV Globo e produzido pelo jornalista e crítico musical Nelson Motta.  

No comando do espetáculo televisivo, que revelou ao país uma nova geração de músicos, estava, além de Ivan Lins, a cantora Elis Regina (1945-1982). Segundo o projeto Memória Globo, a atração pretendia oferecer uma visão panorâmica da música brasileira. “Aplaudido pela crítica, revolucionou os musicais de televisão ao romper com a fórmula do programa de auditório, intercalando depoimentos de personalidades e recolhendo opiniões de populares, o que imprimia um dinamismo próprio a cada número (…) e quebrava a imobilidade tradicional dos demais programas do gênero”, descreve o projeto.  

U. Dettmar / Folhapress

Foi em festivais de música e programas de televisão, como Som Livre Exportação, produzido pelo crítico musical Nelson Motta, que Gonzaguinha popularizou seu trabalho. Foto: U. Dettmar / Folhapress

GRITO DE ALERTA 

Embora a intenção do movimento universitário tenha sido o de criar músicas de forma livre, mais descontraída e despojada, o contexto sociopolítico do país também potencializou a evidente voz crítica de Gonzaguinha. A partir de 1973, com o lançamento do seu primeiro disco, Luiz Gonzaga Jr., ele teve, ao todo, 54 letras vetadas pelos censores do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Estima-se que o órgão tenha analisado mais de 70 de suas composições. Quando, em 1975, Gonzaguinha passou a gerir a própria carreira, tornou-se um dos primeiros grandes artistas do país a abraçar a independência empresarial. Anos mais tarde, em 1986, fundou o selo Moleque, pelo qual gravou os discos Corações marginais (1988) e Luizinho de Gonzagão Gonzaga Gonzaguinha (1990).  

A historiadora Gabriela Cordeiro Buscácio aponta que, apesar da massificação da indústria de bens culturais que a década de 1980 apresentou, tanto a MPB engajada quanto os roqueiros brasileiros mantiveram espaços de criação e de disputas que traduziam o comportamento e o modo de vida de gerações. É o que ela relatou na tese de doutorado O tempo não para: a década de 1980 através de Gonzaguinha e Cazuza, apresentada na Universidade Federal Fluminense, em 2016. “A geração do AI-5, que era jovem durante fins da década de 1960 e nos anos seguintes, cantava sua experiência com a vida política do país ainda focada na canção engajada bossa-novista. Gonzaguinha foi um importante exemplar desse grupo. A juventude da década de 1980, que havia nascido já durante a ditadura militar, tinha uma desesperança com o fim das utopias, se diferenciando da geração anterior”, analisou a pesquisadora no estudo. 

O Dina 
Teu menino desceu o  
São Carlos 
Pegou um sonho e partiu 
Pensava que era  
um guerreiro 
Com terras e gente  
a conquistar 
Havia um fogo  
em seus olhos 
Um fogo de não se apagar 

Trecho da canção “Com a perna no mundo”, de Gonzaguinha. 

VIDA DE VIAJANTE 

Ao aliar trabalhos de caráter mais contestatório, como as canções “Pobreza por pobreza” (1969) e “Comportamento geral” (1973), a um repertório repleto de gravações de aspecto romântico, como “Começaria tudo outra vez” (1976), o músico ganhou as rádios e emplacou diversos sucessos nas vozes de intérpretes como Zizi Possi, Alcione, Fagner e Simone. A cantora Maria Bethânia foi a artista que mais gravou suas músicas até hoje, segundo dados do Ecad, entidade brasileira responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas aos autores. O autor do clássico “O que é o que é”, um hino do samba desde 1982, também foi reconhecido pelo talento nas cordas, conforme recordou o cantor, compositor e sanfoneiro Dominguinhos (1941–2013), em entrevista para o site Gafieiras, em 2011.  

“O Gonzaguinha era um violeiro, bom instrumentista, e sempre escrevia muito. E eu me lembro que uma vez em Exu (PE), ele estava lá e começou a cantar umas coisas dele. Eu digo: ‘Ô, Luiz, por que você não toca violão no show? Você toca muito bem’. ‘Ah, você acha que eu toco bem?’. ‘Acho, rapaz, e ninguém vai saber acompanhar as suas coisas como tu mesmo!’. Aí ele passou a tocar o violão, rapaz, e tinha uma harmonia bonita”, rememorou. Ainda no depoimento, Dominguinhos apontou as diferenças entre os Gonzagas, dos quais foi amigo por toda a vida.  Finalmente, a paz entre pai e filho foi selada em 1979, quando fizeram, juntos, o histórico espetáculo Vida de Viajante, com o qual excursionaram pelo país e puderam, enfim, estabelecer uma amizade que perdurou até a morte do sanfoneiro. 

SEM A VERGONHA DE SER FELIZ 

Disco Viver Gonzaguinha celebra o legado sambista do filho do rei do baião 

Comunidade que viu nascer a primeira escola de samba do Rio de Janeiro, a Deixa Falar, o Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, foi palco das travessuras de infância do menino Gonzaguinha. Foi lá, também, que o artista despertou para o violão, a composição e vivenciou os primeiros contatos com o mundo do samba – estilo musical pelo qual tinha devoção. Ainda que não seja considerado um sambista, tem boa parte de sua obra carregada de elementos do ritmo, homenageado no álbum Viver Gonzaguinha, lançado pelo Selo Sesc. Projeto idealizado por Jair Netto e produção musical de Carlinhos 7 Cordas, o disco tem como intérprete principal o sambista, cantor e compositor Sombrinha, um dos fundadores do grupo Fundo de Quintal. 

Bruna Damasceno

Faceta sambista de Gonzaguinha foi registrada em disco lançado pelo Selo Sesc em 2023, com o músico Sombrinha e artistas convidados. Foto: Bruna Damasceno

Um total de 14 faixas compõe o disco, começando com “Bom dia” (1985), que reúne em coro as vozes de Martinho da Vila, Elba Ramalho, Criolo, Larissa Luz, Vidal Assis, Yvison Pessoa e Zélia Duncan. Já em “Fala Brasil” (1981), interpretada por Sombrinha ao lado de Yvison Pessoa, Gonzaguinha pede para o país “levantar, mostrar seu corpo, sua voz e sua garra”. Um dos pontos altos do disco é o baião “Pense n’eu” (1984), em releitura de Elba Ramalho, e a atemporal “O que é o que é”, escolhida como tema do samba-enredo da Escola Império Serrano, em 2019, no Rio de Janeiro. 

SELO SESC 

Viver Gonzaguinha (2023) | Com Sombrinha e artistas convidados 

Alexandre Calderero/Sesc
Alexandre Calderero/Sesc

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