Ao completar duas décadas de carreira, cantora Fabiana Cozza reflete sobre a poesia ancestral do Carnaval e compartilha memórias afetivas da sua relação com o samba
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Por Rachel Sciré
Em 2024, o álbum de estreia de Fabiana Cozza, O Samba É Meu Dom (2004), completa duas décadas de lançamento. Na época, a cantora tinha 28 anos, mas a sua intimidade com o universo musical já vinha de muito antes, misturada a memórias familiares, entre as quais a convivência com o pai, Oswaldo dos Santos, que foi intérprete da escola de samba Camisa Verde e Branco, uma das agremiações mais tradicionais do Carnaval paulistano.
Fabiana ingressou no estudo formal de música aos 19, na Universidade Livre de Música Tom Jobim, enquanto ainda cursava jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Cinco anos depois, deixou a profissão de jornalista para se dedicar à carreira de intérprete, traçando uma trajetória marcada pelo estudo permanente. Tornou-se mestre em fonoaudiologia, em 2019, também pela PUC, e atualmente é doutoranda no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisa a relação entre a voz e o tambor na música afro–brasileira e afrodiaspórica.
O repertório cultural de Fabiana também inclui o teatro e a dança, bagagem perceptível cada vez que a artista sobe ao palco. Seu rigor técnico e a consistência dos seus trabalhos renderam-lhe prêmios e reconhecimentos – o mais recente foi ter sido presenteada com um conjunto de composições inéditas do sambista, escritor e intelectual Nei Lopes, que deram origem ao álbum Urucungo (2023), o nono da carreira de Fabiana.
Neste Depoimento, a cantora paulistana compartilha reflexões sobre a relação afetiva com o samba, as histórias familiares que fundamentaram sua presença na música e no Carnaval, além do papel educativo da arte.
Eu ouço samba o ano inteiro, toda semana, quase todo dia. Primeiro, porque eu gosto muito, não tem outra justificativa, se não o meu prazer. Depois, quando era criança, o samba rapidamente se alojou nesse lugar da alegria. E não vou mentir: era a música que embalava as faxinas lá em casa, aos finais de semana. A gente colocava os discos que meu pai comprava para ouvir e subia no pano de chão para secar os lugares. É uma lembrança lúdica que tenho. O samba é uma forma de estar com as pessoas. Na minha casa, meu pai escolhia álbuns para tocar no almoço. Foi onde conheci Paulinho da Viola, Cartola [1908-1980], Nelson Cavaquinho [1911-1986], Dona Ivone Lara [1921-2018], Alcione, Beth Carvalho [1946-2019], Almir Guineto [1946-2017]… O samba inaugura uma maneira de me relacionar com as pessoas afetivamente. Traz esse lugar da minha infância, e é um espaço de muito acolhimento, por isso, tão especial. Se estou triste, ouço samba, se estou alegre, ouço samba, se estou distraída, se estou preocupada, vou ouvir samba e aquela preocupação melhora… Eu diria que é o meu lenitivo, mesmo.
Quando eu era criancinha, com seis, sete anos, frequentava as matinês no Palmeiras. Não à toa, passei a amar tanto as marchinhas. Tive uma infância cheia de música, e no período do Carnaval, a música sempre foi muito presente. Não consigo entender as pessoas que não gostam de Carnaval. Não tem coisa mais gostosa do que cantar um refrão em que você tira o microfone, as pessoas cantam e a sua voz se mistura com aquela multidão de gente celebrando a vida, deixando um pouco as angústias de lado. Isso é uma potência revolucionária.
Tenho uma lembrança muito bonita do período do Carnaval, sobretudo quando meu pai ainda desfilava como intérprete na Camisa Verde e Branco. Era um ritual que acontecia perto do desfile, porque o terno que o meu pai utilizaria na avenida era passado pela minha avó, a mãe dele. A única pessoa que podia tocar no terno do meu pai era a minha avó. O terno ficava pendurado no quarto dela e ninguém podia chegar perto. Depois que saía das mãos da minha avó, estava imantado, só o meu pai pegava e se vestia. Aquele terno já era um signo. Claro, ele viraria um terno encantado quando vestisse o meu pai, e o meu pai se encantaria de Verde e Branco para ir à avenida.
Muniz Sodré diz que o saber nas artes negras é o que se incorpora. E se incorpora através da memória – a gente vai ganhando memória das coisas. A memória vivida é aquela que não sai do corpo, porque ela é encarnada. Não se faz samba sozinho e não é possível se emocionar sem o outro. É a alteridade de si. Esse é o espírito da comunicação, obviamente, mas uma comunicação que acontece de forma horizontalizada, e não de um lugar de mando, em que uns fazem e os outros escutam. Isso não significa que não exista hierarquia. Há hierarquia porque os mais velhos são os guardiões do conhecimento, são os que vieram antes, experimentaram, descartaram, aprenderam, refizeram, reelaboraram. Acho que o samba está nesse lugar de conhecimento coletivo, que vai sendo moldado conjuntamente.
O samba, como tantas outras expressividades artísticas negras, é de uma complexidade, de uma beleza, de uma riqueza e nobreza que eu nem consigo descrever. Tenho a maior dificuldade em escrever sobre essas coisas sem ter paixão, sem ser poética, porque o lugar do samba em si também é um lugar poético. É um lugar absolutamente político: os negros formam as escolas de samba porque as escolas formais não lhes cabiam, ali não estavam falando da gente, era muito opressor. Porque a gente entende pelo corpo, fala dançando, e isso de dançar não é um jeito, mas uma maneira de estar na vida e entender que a vida é movimento. E aí está o fundamento: se a vida é movimento, ela é natureza. Por que eu tenho que estar dentro de uma sala de aula fechada e entender ciência, sem olhar a ciência da folha, sem entender a ciência do galho?
Faço música porque ainda acredito, ainda tenho esperança na vida, nas pessoas, não tenho dúvida da minha ancestralidade, e porque, basicamente, eu me emociono
Apresentação do disco Dos Santos, transmitido ao vivo em
2021 do Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, pelo projeto #EmCasaComSesc. Foto: Kazuo Kajihara
Sou uma artista que encara a arte como um lugar pedagógico. Isso é algo que me orienta em meu trabalho artístico e tem ficado muito evidente nos últimos anos. Quando dou aula, é de uma forma mais poética, porque é o que eu sou, é como eu fui formada. As pessoas só escutam se for afetuoso. Quando decido fazer um disco, é de verdade, então chamo gente que também gosta dessa brincadeira séria que é fazer disco. Faço música porque ainda acredito, ainda tenho esperança na vida, nas pessoas, não tenho dúvida da minha ancestralidade, e porque, basicamente, eu me emociono. No dia em que eu deixar de me emocionar, vou deixar de cantar, porque não quero ser hipócrita. E isso funciona quase como uma flecha, toca as pessoas também. Todo mundo vai se encantando. A arte também é um lugar afetivo e precisa ser, porque permite sonhar.
Eu me vejo nesse fluxo que tem herança, tem fundamento, que sabe de onde vem, que honra os presentes que me deixaram. Tenho muito orgulho de ter nascido na família em que nasci, de ter tido os avôs e as avós que tive, de saber de onde vieram aquelas pessoas, da luta que foi para dar condição aos filhos que nasceram depois e, consequentemente, da luta dos meus pais. Tenho muito orgulho de ter recebido essa herança e entendido que aquilo que me ensinaram precisava passar adiante, não poderia morrer comigo. Os saberes e os conhecimentos, sobretudo porque são bens imateriais. Eles se transformam, mas não se descartam. E os elementos constitutivos, as sementes, o grão está ali, está em mim. Como bem diz Paulinho da Viola, eu sou uma mulher do meu tempo, então eu caminho com essas matrizes, e faço delas a motricidade, o movimento, para estar neste tempo. Honrar a minha ancestralidade é também honrar quem eu sou.
Assista ao vídeo com trechos do Depoimento da cantora Fabiana Cozza
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