FEITOS À MÃO | Os saberes e fazeres artísticos no Brasil

29/02/2024

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Preservar as singularidades dos saberes e fazeres artísticos no Brasil também significa valorizar histórias e fomentar aprendizados

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de MARÇO/24 da Revista E na íntegra

Talvez o sabor e o cheiro deste prato tipicamente brasileiro fosse outro. Quem sabe a receita tivesse que ser modificada. Suposições à parte, o fato é que a panela de barro na qual é preparada e servida a tradicional moqueca capixaba, feita pelas mãos de paneleiras do bairro de Goiabeiras, em Vitória (ES), é única. Por isso mesmo, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras foi o primeiro saber manual reconhecido em 2000, como Patrimônio Imaterial, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A partir de então, outros saberes ou “conhecimentos tradicionais associados a atividades desenvolvidas por atores sociais reconhecidos como grandes conhecedores de técnicas, ofícios e matérias-primas que identifiquem um grupo social ou uma localidade” – definição empregada pelo Iphan – passaram a ser, finalmente, considerados tesouros da cultura brasileira.

Atualmente, são aproximadamente 50 os que integram o Livro do Registro dos Saberes, que permite não só uma divulgação ampla desses patrimônios, mas também a proteção aos mestres e mestras de qualquer apropriação indevida dos fazeres que atravessam gerações. “Já foram inscritas as bonecas Karajá, de cerâmica; as cuias de Santarém, no Pará (documentadas inclusive por Mário de Andrade); a viola de cocho no Mato Grosso e a renda irlandesa em Divina Pastora, no Sergipe”, exemplifica a historiadora Adélia Borges, autora do livro Design + artesanato: O caminho brasileiro (Editora Terceiro Nome, 2011).

Nas esferas estaduais e municipais também há movimentos no sentido de preservar, reconhecer e valorizar aqueles e aquelas que mantêm vivas diferentes artes sobre o barro, o tecido, a gravura, a madeira e outros materiais que fazem parte do território onde estão inseridos. Em Bariri, no interior do estado de São Paulo, por exemplo, ativistas do design têxtil conseguiram reconhecer um patrimônio. “Desde o início do século 20, há uma técnica peculiar, chamada amarrio, de desfiar tecidos e com os fios fazer nós, compondo motivos geométricos. Em 2020, o modo de fazer amarrio foi reconhecido por lei municipal como patrimônio cultural imaterial de Bariri”, destaca Borges, curadora da exposição EntreMeadas, realizada nas unidades do Sesc de Vila Mariana, Guarulhos e Bauru, entre 2019 e 2023. A mostra, aliás, reuniu trabalhos de mulheres paulistas que usam o suporte têxtil como meio de autoexpressão e de manifestação de cidadania.

Tramas, pontos, desenhos, materiais, formas de preparo… Muitos já ganharam visibilidade nas últimas duas décadas. No entanto, ainda há um longo caminho pela frente para que outros saberes manuais nos rincões do país, e mesmo nas grandes metrópoles, sejam conhecidos e reconhecidos. “O Brasil tem dimensões continentais com diferenças enormes não só entre as regiões, como entre as localidades. Às vezes, num raio de 100 quilômetros, a gente vê diferentes linguagens e técnicas numa mesma tipologia. Essa diversidade é muito rica, é um patrimônio nosso! Então, melhor falar de algo típico de uma localidade, de uma cultura específica, saindo das generalizações”, alerta.

Além desse cuidado com as peculiaridades que habitam cada patrimônio imaterial, ampliar o número de aprendizes desses saberes é essencial para a longevidade desta teia tão rica e diversa que forma a cultura do país. Incentivar o aprendizado em oficinas e cursos voltados a diferentes públicos, por exemplo, é um caminho para que os saberes e fazeres manuais sejam, como já escreveu a historiadora, “agentes de mudanças no século 21”.

Conheça o trabalho de quatro arte-educadores que pesquisam e ensinam, cada qual, artes que carregam nas mãos um punhado de sabedoria.

ENREDAR TRADIÇÕES

O ateliê é uma extensão do corpo da artista têxtil e educadora Gabriela Cherubin. Desde a infância, esse espaço criativo, habitado pela mãe figurinista e pelo pai médico e artista, influenciou a jovem que caiu nas tramas do universo têxtil, graduando-se em moda na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo (SP), e em cenografia e figurino na SP Escola de Teatro. Depois de formada, Cherubin aceitou o convite de uma amiga e partiu para o Piauí, em 2011, a fim de aprender e trocar conhecimentos com as mestras da renda de bilro da Associação das Rendeiras dos Morros da Mariana. “A renda de bilro é uma técnica têxtil onde os urdumes e as tramas caminham soltos a partir dos desenhos e gestos das mãos que a conduzem para sua formação”, explica a artista, que mergulhou, desde então, em pesquisas sobre a origem dessa arte.

Desenvolvida a partir de processos distintos, a renda de bilro tem sua história entre os países árabes, e também Egito, Peru, China, Inglaterra, Itália, Bélgica e Escandinávia. Mas, aquela que vemos hoje foi desenvolvida a partir do século 15, em Flandres e na Itália. Pelo bilro, fios de ouro e prata para fazer vestidos, toalhas e outras peças da nobreza, até que, no século seguinte, as fibras naturais passaram a ser utilizadas. Ainda são as mulheres, predominantemente, as detentoras desse conhecimento que chegou ao Brasil por influência de portugueses e holandeses, durante a colonização – expandindo-se por diferentes regiões, como Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do país.

Bruna Kim

Nas gravuras criadas pela artista e educadora Bruna Kim, somam-se técnicas manuais e digitais. Foto: Bruna Kim

Adaptadas às localidades onde estão inseridas, tanto as cabeças das duas agulhas – feitas de coquinho tucum, buriti ou miçangas –, quanto o estofado das almofadas de chita – bagaço de arroz ou folhas secas de bananeira –, que servem de apoio ao desenho feito em pedaços de papelão e fixado com agulhas de mandacaru, podem ser encontrados entre as rendeiras dos Morros da Mariana. Após um ano aprendendo a rendar e ensinando a desenhar, Gabriela Cherubin vem passando adiante o conhecimento das rendeiras. De lembrança, guarda a imagem de mulheres de diferentes gerações, sentadas em roda, as mãos como se cortassem o ar, a contar histórias a fio.

IMPRIMIR HISTÓRIAS

A gravura desembarcou no país, no século 19, com os colonizadores portugueses – mais especificamente com o príncipe regente D. João, que implantou a imprensa, até então proibida. Na época, as primeiras tipografias serviam apenas às demandas da corte e do império. Apenas no século seguinte é que a gravura artística começa a ser feita. “Isso foi após o país ter se tornado república, quando o ensino e a prática livre da gravura foram permitidos”, conta a artista e educadora Bruna Kim. Desde então, essa linguagem que abraça diferentes técnicas de impressão a partir de uma matriz – xilogravura, gravura em metal, litografia e serigrafia –, vem ganhando novos contornos.

O encontro da artista com a gravura foi no tradicional Centro Universitário de Belas Artes de São Paulo, no bairro Vila Mariana, zona Sul da capital paulista. Sua grande referência foi a professora Helena Freddi, por quem logo foi convidada a trabalhar em seu ateliê. Com a professora, Bruna Kim aprendeu não só a gravura tradicional, como a possibilidade de experimentar outras propostas. “O raciocínio da gravura tradicional é de que se obtenha o máximo de cópias – é assim que nasce a gravura. Mas, quando se trabalha experimentalmente, a gente gosta do resultado gráfico, dos processos”, conta a artista, que ensina, em seus cursos, como usar embalagens de caixas de leite como matriz de gravuras.

Assim como em outros saberes manuais, a tecnologia digital pode, sim, caminhar lado a lado, sem competir espaço com técnicas manuais. No caso da gravura, Bruna Kim alia tanto o desenho gravado numa matriz para novas criações, quanto a fotocópia de uma fotografia digital impressa em tecido para dar vida a suas propostas. Gravuras de mãos segurando ferramentas tornaram-se tema recorrente da artista, que acredita nessa miscelânea de técnicas. “Penso que é da nossa cultura essa adaptação de materiais para criar. Na xilogravura, por exemplo, às vezes nem se usa madeira maciça, usa-se compensado, que são lâminas de madeira prensadas, ou MDF e até linóleo, que são materiais mais acessíveis. A escassez de alguns materiais também fez com que a gente fosse se adaptando aos recursos que existem aqui”, observa.

LAPIDAR CONHECIMENTOS

Ao ler uma matéria sobre marchetaria, o então psicólogo Thiago Endrigo acenou para os saberes manuais. De maneira autodidata, e com poucas ferramentas – um estilete, uma régua de metal e algumas lâminas de madeira –, a marchetaria, ou a arte de ornamentar superfícies planas, chegou primeiro como um hobby, em 2005. Em seguida, um amigo luthier foi, de fato, seu primeiro mestre, ensinando Endrigo a construir guitarras elétricas usando máquinas estacionárias e ferramentas técnicas. “Por anos, restaurei órgãos de tubos e construí cravos. Trabalhei com Maren Gehrts, alemã radicada em São Roque (SP), e em restauros importantes de instrumentos históricos, em São Paulo (SP) e Diamantina (MG). Restauros que estavam a cargo de ateliês estrangeiros. Eu pude trabalhar com mestres e mestras que me deram a chance de aprender e praticar técnicas tradicionais”, recorda.

Em paralelo, a marcenaria foi a última peça – pelo menos por enquanto – a se encaixar no dia a dia de Endrigo, que passou a se dedicar profissionalmente a esses ofícios em 2012. “Eu demorei até conseguir encontrar os velhos mestres que trabalhavam com mobiliário. Às vezes, quem é portador ou portadora de um conhecimento não se autodenomina mestre ou mestra. Você chega a pensar que essas pessoas não estão mais por aí, mas tem muita gente se dedicando aos saberes manuais: alguns trabalhando de forma bastante tradicional, outros trabalhando com outras tecnologias”, observa.

Guilherme Siqueira

Na marcenaria, o arte-educador Thiago Endrigo aplica conhecimentos sobre matéria-prima e técnicas, como a marchetaria. Foto: Guilherme Siqueira

No Brasil, a marcenaria abrange técnicas diferentes trazidas por colonizadores europeus e um conhecimento sobre matérias-primas, principalmente, de povos indígenas e africanos. Graças à sabedoria dos povos originários, colonizadores aprenderam qual madeira seria mais adequada para se fazer uma canoa ou mesmo um instrumento musical.  Esse saber, transmitido oralmente, não foi atribuído aos detentores desse conhecimento, sendo apenas incorporado anonimamente pela história. Hoje, ao falar da madeira como matéria-prima, um recurso natural ameaçado pelo extrativismo, Endrigo reforça a importância de uma consciência ambiental. O mesmo discernimento, para o educador, é necessário ao refletirmos sobre esse afastamento da natureza e dos saberes manuais. “Há quem acredite que o trabalho manual e o trabalho intelectual tenham valores diferentes. No entanto, estamos trabalhando o tempo todo com as mãos e com a cabeça, integralmente. Não dá para separar uma coisa da outra”, reforça.

POÉTICAS DO BARRO

Objetos de barro criados numa olaria ficaram na memória da ceramista Mariana Silva, que na infância viveu em São Lourenço, cidade ao sul de Minas Gerais. Até os 18 anos, ela acompanhava apenas de longe esse saber manual que remonta a pré-história da humanidade. Pouco depois, residindo em São Paulo e frequentando o Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), ela teve seu reencontro com a cerâmica. “Aquela era a minha linguagem. Eu até passei por muitas técnicas, como quem passa para aprender, mas não se envolve”, recorda. Também foi essa influência mineira – “Como diz Carlos Drummond, Minas é dentro e fundo” – que a conduziu numa pesquisa pela região central do estado, onde ainda se faz uma cerâmica que remonta ao período colonial, ancestralmente realizada por mãos negras e indígenas.

“Fiz uma oficina e fui entender que o mestre, supernovo, tinha aprendido com um mestre mais velho e que esse tinha aprendido com outro… Ou seja, era uma linhagem de oleiros desde a colonização portuguesa, nas cidades de Ouro Preto e Ouro Branco”, lembra. A partir desse momento, a ceramista buscou entender como os povos originários se relacionavam com esse saber. “E o que seria uma cerâmica brasileira? Fui por esse caminho e, desde então, venho me envolvendo com comunidades artesãs”, explica Silva, que faz um doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), onde pesquisa os modos de escrita da cerâmica marajoara, na Ilha do Marajó (PA).

Thaina Souza

Os saberes e fazeres de povos originários e africanos moldam as
criações da ceramista Mariana Silva. Foto: Thaina Souza

Foi também a partir do contato com outras mestras e mestres do barro que Mariana Silva constatou que havia uma homogeneização da forma como aprendeu a fazer cerâmica desde a universidade. Na faculdade, primeiro se modelava a forma, deixava-se secar para fazer o “biscoito” (a queima de baixa temperatura, entre 800-900 graus Celsius). Após essa primeira queima, esmaltar (passar o vidrado cerâmico) e, só então, realizar a queima final, numa temperatura mais alta (acima de 1200 graus Celsius).

“Em Cunha (SP), por exemplo, sempre teve uma produção ceramista de paneleiras, mulheres caipiras, mulheres da roça. Com a chegada de povos asiáticos e europeus, a cidade virou a ‘capital da alta temperatura’. E os povos originários que faziam à baixa temperatura suas panelas foram ficando completamente esquecidos, e o fazer deles foi tido como algo menor. Uma negligência com os saberes dos povos tradicionais no Brasil”, destaca. A cerâmica à baixa temperatura pode resultar em um filtro de barro, num vaso de planta, numa cumbuca ou cuia. “A gente precisa olhar para a nossa cerâmica, sobretudo aquela feita pelos povos que estavam aqui ou que vieram forçadamente para cá, mas já tinham uma sabedoria, uma tecnologia para manejar a terra. Hoje, quando estou modelando um objeto, penso: ‘eu tenho um presente do tempo aqui nas minhas mãos’”, acrescenta.

Polinizar saberes

Que tal aprender e vivenciar diferentes fazeres manuais em cursos e oficinas nas unidades do Sesc São Paulo?

Lugar de encontro e de troca de saberes, os Espaços de Tecnologias e Artes (ETA), presentes nas unidades do Sesc na capital, interior e litoral do estado de São Paulo, contam com educadores e educadoras que orientam, em salas equipadas, atividades educativas nos universos das artes visuais, principalmente, e das tecnologias – digitais, analógicas, sociais e ancestrais. “Mensalmente, são oferecidas cerca de 400 atividades em todas as unidades, permitindo ampla troca de saberes entre nossos variados públicos e educadores artísticos”, explica Enio Rodrigo, assistente técnico na Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo.

Rebeca Figueiredo

Na Oficina de Criatividade do Sesc Pompeia são realizados cursos de
cerâmica, costura, gravura e pintura, entre outras técnicas. Foto: Rebeca Figueiredo

Somam-se ao ETA as Oficinas de Criatividade, presentes em ateliês no Sesc Pompeia e, a partir deste mês, no Sesc Bertioga. Desenho, cerâmica, costura, fotografia, gravura, marcenaria, pintura e têxtil são algumas das técnicas que podem ser experimentadas pela primeira vez ou desenvolvidas nos ateliês. “A difusão do conhecimento teórico e prático é muito importante. Em palestras, seminários e ciclos de debates é possível discutir as complexidades desses saberes, abrir espaço para os estudiosos apresentarem suas pesquisas. Em oficinas e cursos práticos, é possível transmitir as técnicas”, reforça a historiadora Adélia Borges.

Confira alguns destaques da programação deste mês:

BERTIOGA

Tapeçaria experimental

Ministrado pela artista Sarah Lopes, o curso apresenta a técnica e mostra uma diversidade de aplicações.

Dias 7, 14, 21 e 28/3; 4, 11, 18 e 25/4; 2, 9, 16 e 23/5, quintas, das 15h às 18h.

POMPEIA

Cerâmica e ancestralidade (intermediário)

O Curso ministrado pela ceramista Mariana Silva que aborda a prática em cerâmica a partir da cultura dos povos tradicionais do nosso território, investigando os saberes e fazeres de povos indígenas e afro diaspóricos no Brasil.

De 20/3 a 26/6, quartas (exceto dia 1º/5), das 14h30 às 17h30.

14 BIS

Introdução à xilogravura

Ministrado por Rafael Kenji, do Atelier Piratininga, as aulas focam tanto em meios tradicionais quanto em meios alternativos de maior facilidade de acesso aos participantes. 

De 13/3 a 5/6, quartas, das 18h30 às 20h30.

BAURU

Arte em mosaico

Nas aulas ministradas pelo mosaicista Gé Coltré, serão abordados conceitos da técnica e seu contexto histórico.

De 19/3 a 3/4, terças e quartas, das 18h30 às 21h30. GRÁTIS.

As inscrições podem ser feitas pelo aplicativo Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br

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