INDISPENSÁVEL MISTURA | O legado de João Donato

31/01/2024

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O inigualável suingue  de João Donato, músico que fez do encontro da bossa nova com outros ritmos o seu legado imortal 

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POR LUNA D´ALAMA

O pianista, compositor e arranjador João Donato (1934-2023) estava bem-humorado, como de costume, quando subiu ao palco do Sesc Sorocaba, no interior do estado de São Paulo, para realizar aquela que seria uma de suas últimas apresentações, em maio do ano passado. Acompanhado do cantor Jards Macalé, amigo com quem lançara, em 2021, o elogiado disco Síntese do Lance (Rocinante), ele vivia uma fase de celebração. A inédita parceria da dupla, já octogenária, comprovara que os músicos estavam em plena forma artística, dispostos a desafiar o passar dos anos com ousadia e graça. Na imagem de capa do álbum, por exemplo, posaram parcialmente despidos para as lentes do fotógrafo Leo Aversa. E, naquela inesperada despedida, foram pura energia vital. Apesar da saúde debilitada, João Donato irradiava a mesma paixão com a qual atravessou mais de sete décadas de uma carreira que transcendeu o tempo.

Sentado à frente do instrumento que o consagrou, era venerado por ter produzido uma sonoridade única, própria, em que mesclava outros ritmos latinos à bossa nova. “Música é boa para qualquer coisa. Música e água são indispensáveis (…) Eu gosto que a música contenha uma certa nostalgia, uma certa saudade que ela nos dá (…) Tudo acaba em música, graças a Deus!”, afirmou o artista, em 2019, em conversa com a jornalista Roseann Kennedy no programa Impressões, da TV Brasil. Tamanha devoção se reflete no legado de Donato: são mais de 500 composições e 30 discos, além de incontáveis colaborações com nomes como Tom Jobim (1927-1994), João Gilberto (1931-2019), Sérgio Mendes, Marcos Valle, Caetano Veloso, Chico Buarque e Rodrigo Amarante.

Primeiras melodias

Ao passo em que ressaltava a importância de levar a bossa nova para o mundo, Donato afirmava que o ritmo brasileiro também foi fundamental para a difusão do jazz, outra de suas paixões. “O jazz nunca foi popular, sempre foi uma coisa para poucas pessoas. Comercialmente falando, nunca foi bem-sucedido. Mas, quando chegou a influência da música brasileira, o jazz tornou-se música popular, chegou aos primeiros lugares nas paradas de sucesso. Isso nunca tinha acontecido antes”, refletiu, no depoimento à TV Brasil.

Nascido em Rio Branco, no Acre, o músico recorria à geografia da cidade em que viveu até o começo da adolescência quando falava de suas primeiras memórias musicais. “Um nativo e sua canoa, passando na beira do Rio Branco, alguém assobiando uma melodia [assobia “Lugar comum”, composição sua com letra de Gilberto Gil]. É a lembrança mais remota que tenho, a música que ‘passou pela minha infância’. Devia ter seis ou sete anos. Na época, fiz para minha namorada, a Nininha”, recordou Donato, em 2008, em entrevista ao repórter Cristiano Bastos para a revista Rolling Stone.

Acervo do Instituto João Donato

Quando menino, aprendeu a tocar acordeom – e foi com o instrumento que passou a se apresentar em festas e bailes no Rio de Janeiro (RJ), cidade para onde a família migrou em 1945. O estímulo artístico também surgiu no lar. Aprendeu suas primeiras notas com a irmã, Eneyda, que já tocava piano. “Logo após, um sargento da banda militar da polícia me deu aulas de ‘como é que se tocava uma música’: ele lendo a partitura e me ensinando a tocar, decorado de ouvido”, contou, no mesmo depoimento.


Aos 12 anos, o músico acriano mal podia imaginar que reverberaria nos quatro cantos do mundo.
Foto: Acervo Instituto João Donato

A alegria dos encontros

A amizade com o cantor Lúcio Alves (1927-1993), iniciada nos primeiros anos vivendo na então capital do país, Rio de Janeiro, permitiu que Donato conseguisse espaço em seu primeiro conjunto vocal, Namorados da Lua. Pouco depois, o jovem acordeonista já participava de jam sessions com outros músicos. Em uma dessas reuniões, tocou com o cantor Dick Farney (1921-1987), um dos precursores da bossa nova. Em seguida, vieram outros grupos, como o Altamiro Carrilho e Seu Regional e apresentações no circuito das casas noturnas célebres do período, como Sacha’s e Vogue.

Foi somente em 1951, aos 17 anos, que Donato mergulhou, de forma intensa, nos estudos do piano – e passou a apreciar obras dos compositores franceses Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). A perspectiva de viver da música, no entanto, ainda não era segura. Sobre o período, o artista rememorou, nas páginas da Rolling Stone: “Apenas tinha mania de música, não sabia que viria a ser minha profissão. Profissão, mesmo, só depois dos 18, quando fui reprovado para ser piloto da aeronáutica, como meu pai. Tenho problema de daltonismo e disse pra mim mesmo: se não dá pra ser piloto, vou ser músico. Mas não foi decisão tomada (…). Foi a reprovação de um sonho que eu tinha de ser aviador”.

Logo Donato gravou seu primeiro disco, Chá Dançante (1956), com produção de Tom Jobim. No mesmo período, excursionou como parte da banda da cantora Elizeth Cardoso (1920-1990) e com João Gilberto. Assim, à medida que o mundo conhecia a revolução sonora contida no álbum Chega de Saudade (1959) em temporadas na Europa e nos Estados Unidos, outro João também se firmava como um dos expoentes daquela nova música popular brasileira que emergia, provocando fascínio por onde passava.

Constelação de gênios

Nos anos 1960, outros nomes estelares contaram com a parceria do piano de Donato em turnês e gravações, como a violonista Rosinha de Valença (1941-2004), a cantora Astrud Gilberto (1940-2023) e o flautista Herbie Mann (1930-2003). Trabalhou, ainda, com dois de seus ídolos: o lendário guitarrista Wes Montgomery (1923-1968) e o pianista e compositor Stan Kenton (1912-1979). A década seguinte teve início com o sucesso do álbum experimental A Bad Donato (1970). Com arranjos de Eumir Deodato, a obra traz a fusão da MPB ao jazz, rock, funk e música eletrônica, mistura diferente de tudo o que existia na época. De volta ao Brasil, depois de um extenso período vivendo em Los Angeles, nos Estados Unidos, Donato arquitetou mais uma surpresa: o lançamento do seu emblemático disco Quem é Quem (1973).

O álbum reúne canções na voz do próprio João Donato e segue cultuado, 50 anos depois, pela originalidade do repertório.  Na ficha técnica, uma carta escrita a João Gilberto (e não enviada) conta detalhes dos processos de composição e gravação. “Como se vê, é o meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demorou, o que demonstra o máximo de cuidado com que tudo aconteceu, e o resultado é um disco que sinceramente eu acho adorável (…). Enfim, Quem é Quem é lindo. Bom proveito e feliz fim de sonhos lindos – céu azul celeste – tempo estável – temperatura aqui na Glória 19°C”, escreveu ao amigo.

Acervo do Instituto João Donato
Na cidade de Nova York, em 1964, ao lado do músico e maestro Tom Jobim, que produziu o primeiro disco de João Donato, Chá Dançante (1956). Acervo do Instituto João Donato

Sabor latino

Na gênese do estilo inconfundível de João Donato estão não somente os anos vivendo em solo norte- -americano, mas também o enorme pendor para fazer amigos. Sobre a intersecção musical que popularizou e se tornou sua marca registrada, o artista relatou, em 2019, ao jornal Folha de S. Paulo. “Logo que cheguei aos Estados Unidos, fui encontrar com o pessoal da Carmen Miranda (1909-1955), que me ofereceu um trabalho de duas semanas. Quando terminou, eu fiquei sem emprego, não me levaram adiante porque acharam que eu estava muito americanizado. Estava vindo do Brasil, minhas referências eram João Gilberto, Tom Jobim. Aquela coisa do ‘um cantinho, um violão’. O pessoal da Carmen ainda estava com o ‘Tico Tico no Fubá’ na cabeça”, afirmou.

Preocupado com a atípica falta de entrosamento, coube ao músico buscar alternativas para sobreviver. “Eu me virei com sorte. Entrei num motel de Hollywood [em Los Angeles, na Califórnia], estava explicando ao gerente que eu era um músico brasileiro e ele comentou que lá havia um compositor cubano. Logo ele se aproximou, [o percussionista] Armando Peraza (1924-2014), e eu o reconheci pelo nome nos discos. Ele disse ‘qué pasa?’, eu contei e ele: ‘nunca tinha visto um homem mais gordo na vida’. Ficamos amigos para sempre”, narrou o pianista.

Por intermédio de Armando Peraza, João Donato foi “adotado” por uma orquestra latina. “’Você é nosso pianista, pronto.’ De não cubano, só tinha eu e um contrabaixista mexicano”, recordou. Embora questionasse o ritmo, que julgava repetitivo, o brasileiro rapidamente reconfigurou sua maneira de tocar e adquiriu, assim, as habilidades com os acordes e melodias que o inseriram entre os grandes instrumentistas de todos os tempos. “Toda vez que eu saía daquilo, eles diziam ‘não!’. Essa disciplina eu fui aprendendo, e esse sabor latino hoje faz parte da minha música. Eu me encontrei nessa mistura”, arremata.

Leo Aversa
Ao lado do amigo Jards Macalé em ensaio fotográfico para o disco Síntese do Lance, em 2021. Com Macalé, João Donato realizou uma de suas últimas apresentações, em maio de 2023, no Sesc Sorocaba. Foto: Leo Aversa

Em boa companhia

Discos lançados pelo Selo Sesc e programas do SescTV enaltecem a personalidade musical de João Donato e suas celebradas parcerias

Reverenciado pelo público e por gerações de artistas, João Donato segue presente em inúmeras participações, arranjos e composições em álbuns do catálogo do Selo Sesc. Lançado em 2016, e indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum Instrumental daquele ano, Donato Elétrico reúne inéditas que retomam a sonoridade setentista dos trabalhos do artista, marcados profundamente pelo uso do piano elétrico. Já o disco Sessões Selo Sesc #7: João Donato + Projeto Coisa Fina (2020) apresenta o show gravado ao vivo, em julho de 2019, no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros. Donato foi arranjador e pianista, ainda, das faixas “Saudade fez um Samba”, de Gilberto Gil, “Samba do Carioca”, de Fernanda Abreu, e “Lobo Bobo”, de Mart’nália, no recém-lançado Afeto – Carlos Lyra 90 anos (2023).

EVELSON DE FREITAS
Com seu clássico bom-humor, durante show de lançamento do
álbum Donato Elétrico, lançado pelo Selo Sesc, em 2016, e indicado
ao Grammy Latino de Melhor Álbum Instrumental. Foto: Evelson de Freitas

É do mestre acriano, também, a assinatura dos arranjos das faixas “Maria Moita”, “Quarta-feira de Cinzas”, “Onde anda você” e “Eu não existo sem você”, de Mariana de Moraes, no disco Vinicius de Mariana (2023), em que a cantora presta homenagem ao avô. Como arranjador, Donato participou do álbum Olorum (2020), do cantor e compositor Mateus Aleluia. Entre os inéditos, a parceria com a cantora e compositora Tulipa Ruiz no álbum Trago, com previsão de lançamento em 2024.

A programação do SescTV, por sua vez, oferece duas homenagens a João Donato: um especial para celebrar o músico, que faria 90 anos em agosto deste ano, gravado no Sesc Pompeia, em 2014. Ainda na programação, é possível assistir ao registro audiovisual da parceria de Donato com o trombonista Raul de Souza (1934-2021), em 2009, no Sesc Vila Mariana.

SELO SESC

Donato Elétrico (2016)

Sessões Selo Sesc #7:

João Donato + Projeto Coisa Fina (2020)

Afeto – Carlos Lyra 90 anos (2023)

Vinicius de Mariana (2023)

Olorum (2020)

Escute os álbuns em sesc.digital ou acesse o site do Selo Sesc para adquirir os discos: sescsp.org.br/selosesc

SESCTV

Homenagem aos 90 anos de João Donato

Dia 7/2, às 21h.

Raul de Souza e João Donato

Dia 9/2, às 22h.

Assista em sesctv.org.br

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