LUGAR DE AFETO | Iniciativas preservam a memória de bairros na cidade

28/11/2023

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Iniciativas em diferentes bairros de São Paulo buscam preservar a memória local e estimular sentimento de comunidade

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

As ilustrações presentes nesta reportagem foram criadas para o projeto Paisagens Postais, em 2018, em comemoração aos 70 anos das ações do Sesc São Paulo em Turismo Social

Ao lado de um pé de carambola, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009) plantou uma bananeira no quintal da casa onde morou na Bela Vista, região central da capital paulista, na década de 1930. Na época, ele era um jovem professor na recém-criada Universidade de São Paulo (USP) e vagava por ruas onde carros e bondes conviviam com vacas e bois, enquanto lençóis nos varais das casas vizinhas acenavam para o primeiro arranha-céu da capital, o edifício Martinelli.

As lembranças da rua Cincinato Braga, 232 – hoje, um prédio – e do dia a dia no bairro jamais abandonaram um dos grandes pensadores do século 20, tanto que foram relatadas ao jornal O Estado de S. Paulo em outubro de 1985, quando Lévi-Strauss visitou a cidade. Na ocasião, observou uma paisagem urbana completamente diferente daquela que havia descrito e fotografado em Saudades de São Paulo (Companhia das Letras / Instituto Moreira Salles, 1996). Também constatou, no ensaio “Tristes Trópicos”, da série Terre humaine (Editora Plon, 1955), que a cidade de São Paulo está destinada a abraçar passado e futuro em seu curso, uma vez que se “desenvolve a tal velocidade que é impossível obter seu mapa: cada semana demandaria uma nova edição”.

Assim como o antropólogo francês, moradores de diferentes regiões de São Paulo plantaram suas memórias em jardins, esquinas, casas e comércios. Recordações que, juntas, representam a identidade de uma rua, de um bairro, de uma região. A partir disso, na contramão de um crescimento urbano vertiginoso, capaz de apagar espaços que representam a memória local, multiplicam-se iniciativas que valorizam a preservação de endereços residenciais e comerciais, de parques e praças históricas. Ações que também estimulam o sentimento de pertencimento e comunidade na população.

Eva Uviedo

IDENTIDADE PRESERVADA

Reduto do samba na rua Horácio Lane, 21, em Pinheiros, o Ó do Borogodó é um exemplo de espaço cultural ameaçado pelo acelerado movimento de verticalização desse bairro na zona Oeste da cidade. Fato que vem provocando mobilizações, desde 2022, por parte de moradores, frequentadores e da proprietária, Stefânia Gola. Como resultado, em novembro, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp) deu início ao processo de tombamento do espaço. Além do Ó, outras edificações vizinhas correm risco de desaparecer, segundo a ativista urbana Veronica Bilyk, que criou, em 2021, com a fotógrafa Rosanne Brancatelli, o movimento Pró-Pinheiros.

Apaixonada pelo local onde vive, Bilyk já foi conselheira participativa municipal do bairro, além de presidente da Associação de Moradores e Amigos dos Predinhos de Pinheiros (Amapp). Atualmente, as ações do Pró-Pinheiros mobilizam moradores, comerciantes e simpatizantes da região pela preservação da identidade local. “Logo de início, fizemos um perfil no Instagram e fomos criando um polo de conhecimento a respeito de legislação e questões jurídicas. Realizamos manifestações e a mídia foi se interessando. Nosso objetivo é combater os excessos da verticalização, que é importante, mas precisa ser planejada e realizada com estudos de impacto, coisa que não acontece. Isso tudo [novas construções e demolições] está sendo feito sem preocupação ambiental, por exemplo, provocando danos aos lençóis freáticos”, pontua.

O Pró-Pinheiros já colhe frutos. Recentemente, o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) iniciou o processo de tombamento de cerca de 600 espaços do bairro, como o Mercado de Pinheiros e a Escadaria da Bailarina. “Nós também estamos movimentando um projeto de plano de bairro, que traz o que os moradores, habitantes e comerciantes pensam para o futuro daquela localidade. Vamos pensar em lugares de comunidade, lugares de encontro, parques, bibliotecas, postos de saúde. Aliás, todo o processo de planejamento urbano, de pensamento urbano, deveria nascer dos planos de bairro”, reforça.

Kei Isogai

NOSSA VIZINHANÇA

Criadora do projeto Ipiranga Feelings, a jornalista Bruna prefere manter o anonimato para continuar seu hobby de moradora-observadora-admiradora desse bairro na zona Sul de São Paulo que tem 439 anos de história. Um lugar “onde todos se conhecem e, com jeitinho, se acolhem”, como descreve no perfil do Instagram (@ipirangafeelings). Há sete anos, Bruna mora na “província”, apelido afetivo que ela deu ao bairro e, diariamente, pratica o exercício de olhar com atenção e afeto ao redor – um lembrete diário aos vizinhos, para que sigam apreciando, ou comecem a apreciar, cada lugar captado em imagens e textos publicados.

“Em 2016, eu criei o perfil para compartilhar as coisas que eu via, esses encantamentos. Não tinha pretensão de nada. As pessoas foram se aproximando ao perceber esse olhar. Acontece que quem está aqui, há muitos anos, também passa batido pelas coisas, tanto que comecei a receber mensagens do tipo: ‘eu moro aqui há 30 anos e nunca vi esse museu que você mostrou’. Como eu ando a pé, acho que isso também faz diferença, pois você tem outra relação com a cidade”, conta Bruna, que também atribui seu encantamento às amizades que fez na vizinhança. Como Dona Terezinha, “uma senhora de colar de pérolas e cabelo de nuvenzinha, que conversava com todos que vinham lhe cumprimentar na calçada”, recorda.

Tanto no perfil do Instagram, quanto no site ipirangafeelings.com.br, criado em 2018, Bruna publica dicas de passeios, histórias de moradores, além de notícias sobre o comércio local, falta de energia, guia de feiras livres, e outros assuntos. “O Ipiranga Feelings fala ainda sobre patrimônio e defesa de patrimônio. Não entra na minha cabeça como esse bairro, com tantos edifícios históricos, não seja um lugar turístico na cidade”, reflete Bruna, que também se preocupa com a divulgação de serviços públicos. “Falamos sobre a importância de aprender onde reclamar, como reclamar, com quem reclamar, sempre de forma didática. Há muitas pessoas que não sabem a quem recorrer, não sabem como funciona a cidade, o que faz uma subprefeitura e uma prefeitura”, explica.

Para a jornalista enamorada pelo bairro que “tem cheiro de café passado na hora e de janta de vó”, o objetivo do perfil é que mais vizinhos reparem nas singularidades do Ipiranga. “Faça uma caminhada, conheça seu entorno, conheça o seu vizinho, saiba a história dele. O maior incentivo [do Ipiranga Feelings] é promover o bem-viver, é tentar trazer o olhar das pessoas para dentro, para o que está perto. Tem coisa melhor do que ajudar o lugar onde você mora?”, destaca.

Estamos movimentando um projeto de plano de bairro, que traz o que os moradores, habitantes e comerciantes pensam para o futuro daquela localidade

Veronica Bilyk, ativista urbana cocriadora do movimento Pró-Pinheiros

RETRATOS DO BAIRRO

Em outro ponto da cidade, na zona Leste, outra iniciativa que também tem o objetivo de mudar a percepção dos moradores sobre o próprio bairro é o perfil do Instagram e Facebook Cidade Tiradentes Lovers, criado pelo designer Wendel Gomes e pelo estudante Francisco Wildon, em 2021. Enquanto as manchetes da grande mídia se restringem a pautas sobre violência e desigualdades sociais na região, a dupla de jovens decidiu mostrar outros ângulos do lugar onde moram. “A zona Leste é um lugar malvisto até pelos próprios moradores. Então, nosso objetivo é mostrar outro lado, e a internet é um lugar bacana para fazer isso. Queremos mostrar o lado bom do bairro, reunir os apaixonados pelo bairro”, conta Wendel.

Apesar de não se ausentar da publicação de notícias sobre acidentes de trânsito, buraco na rua, falta de luz, entre outros, a página, que funciona como uma rede comunitária, também valoriza empreendedores locais e dá dicas de lugares para se visitar no bairro, como o Parque Vila do Rodeio, a Fábrica de Cultura e o Centro de Formação Cultural. Ano passado, o Cidade Tiradentes Lovers  também realizou um concurso de fotografia para os moradores exercitarem outro olhar para a região.

“A gente faz entrevistas com os moradores como, por exemplo, um rapaz que dança break, e tira foto de espaços do bairro, como de um projeto que ensina as famílias a andarem de patins. Entrevistamos um pessoal que estava ‘escondido’ e que ninguém sabia. Porque Cidade Tiradentes é um bairro populoso [mais de 250 mil habitantes], então tem muita coisa desconhecida pelos próprios moradores, e a gente procura mostrar que é legal viver ali”, explica Gomes.

VAMOS FLANAR?

Fotógrafo autodidata, André Gomes já percorreu a pé todas as regiões da cidade de São Paulo. No começo, saía sem destino, como a figura do flâneur descrita pelo poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), esse alguém que percorre as ruas sem objetivo aparente, mas atento à história dos lugares por onde passa. Assim, “acabei descobrindo uma cidade que não está nos livros técnicos ou didáticos, então aprendi muito nessa jornada”, conta Gomes.

Há sete anos, ele conciliou a fotografia com a formação em arquitetura e urbanismo, o que ampliou seu foco para edificações históricas registradas, principalmente, no Centro, como o Theatro Municipal de São Paulo e outros ícones da arquitetura. Quando as restrições impostas pela pandemia o fizeram deixar de lado a câmera, sua esposa lhe sugeriu que voltasse a fotografar, dessa vez registrando as casinhas pelas quais passava todos os dias na Mooca, zona Leste da cidade.

Depois de fotografar dez casas na rua onde morava e publicá-las em seu perfil do Instagram, André se surpreendeu com a repercussão. “Comecei a entender que, além da fotografia, aquilo ali trazia um sentimento para as pessoas, uma certa nostalgia, o resgate de uma memória de infância, da arquitetura da cidade de São Paulo de uma outra época. Não era só, e simplesmente, uma cena congelada. Aquelas imagens se desdobravam nesses outros sentimentos”, observou. De lá para cá, além da Mooca, o fotógrafo e arquiteto voltou a flanar por bairros de todas as regiões – como Santana, Penha, Barra Funda e Saúde –, agora em busca não só de casinhas, mas de pequenos prédios e até mesmo de comércios cuja arquitetura permanece suspensa no tempo. André defende que um dos objetivos desses registros é aguçar seu olhar pela cidade e, consequentemente, das pessoas que acompanham seu trabalho. Para ele, “reparar essas edificações que estão ‘perdidas’ no meio de tanto arranha-céu é, de certa forma, fazer um resgate da memória da cidade e de outra época”. Por isso, hoje ele celebra o fato de que outras pessoas inspiradas pelo seu perfil no Instagram (@andredvco) começaram a registrar prédios históricos dos bairros nas cidades onde moram. “Por mais que essas casinhas venham desaparecendo por questões imobiliárias, sociais e culturais, essa é uma caminhada que não tem fim. Manter essas casas também significa manter a história da cidade, da arquitetura, das famílias e, principalmente, a identidade de um bairro”, conclui.

Faça uma caminhada, conheça seu entorno, conheça o seu vizinho, saiba a história dele

Bruna, jornalista e criadora do @ipirangafeelings

Construir memórias

A partir de atividades em diferentes territórios, Turismo Social do Sesc São Paulo desperta consciência dos viajantes e valorização da história local

Por meio de seu Programa de Turismo Social, o Sesc São Paulo convida seu público a despertar a consciência histórica, socioambiental e comunitária, seja quando em contato com diferentes locais, ao viajar, seja em sua própria cidade. Criado há 75 anos, o Programa visa democratizar o acesso às práticas turísticas, promover a educação pelo e para o turismo, ampliar a cultura de viagem e o protagonismo dos participantes, bem como valorizar e reconhecer os territórios como ambientes educadores e de convivência.

“Quando pensamos em viagem, geralmente pensamos no longe, no fora da própria cidade, mas o que pode uma experiência de (re)conhecer a própria cidade que habitamos?”, questiona Fernanda Vargas, técnica de Turismo Social na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo. Segundo a especialista, “cada vez mais temos grupos que tensionam modos tradicionais de contar a cidade, reivindicando o reconhecimento de patrimônios culturais, memórias e histórias de pessoas, grupos e populações não contemplados nas narrativas oficiais. Afinal, se a cidade é produção de múltiplos e diversos grupos sociais, os modos de recontá-la são inúmeros”, defende Vargas.

Dessa forma, as ações realizadas permanentemente pela instituição – passeios, excursões, oficinas, bate-papos e atividades online – buscam desenvolver processos voltados ao contato com o outro, o respeito à diversidade e pelos territórios, colaborando, assim, para a consolidação de cadeias econômicas éticas e sustentáveis no setor.

Conheça alguns destaques da programação do Sesc São Paulo na área de Turismo Social, em dezembro:

14 BIS

Pelos caminhos de Oxum, águas do Bixiga

Caminhada pelos cursos d’água e várzeas do bairro do Bixiga, na região central da capital paulista, para reconhecimento de antigos quilombos, espaços de samba, terreiros e hortas. Com Romilda Almeida Correia, Fernando Penteado, Egbome Jennifer de Xangô e Michel Françoso, moradores da região.

Dia 9/12. Sábado, das 10h às 15h. GRÁTIS.

CARMO

Conhecendo o território: Capela dos Aflitos

Visita à Capela Nossa Senhora dos Aflitos, cuja trajetória demarca uma história ancestral negra e indígena no Centro de São Paulo, além de uma performance da Tapijás Cia. de Teatro sobre a história de Chaguinhas, importante personagem local. Após a visita, bate-papo sobre o bairro da Liberdade, Cemitério dos Aflitos e a história negra e indígena da região

Dia 5/12. Terça, das 14h30 às 16h. GRÁTIS.

GUARULHOS

Revelando Guarulhos – Lugares de memórias pretas na cidade

Conheça espaços de Guarulhos que possuem memórias da presença preta na cidade. O objetivo do passeio é possibilitar que os participantes enxerguem os locais visitados sob outra perspectiva histórica e reflitam sobre o apagamento das memórias das pessoas pretas que construíram a cidade.

Dia 10/12. Domingo, das 9h às 13h. GRÁTIS.

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