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Mãe,
há muitos anos tenho a impressão de que fiz uma coisa que preciso te contar. é provável que esta carta chegue às mãos do fogo antes de chegar às suas, mas o que importa é que eu escreva como se você pudesse – aí do quarto onde assiste seu velho programa, com seus velhos atores dizendo suas velhas opiniões, e mesmo que uma nota mais quente hora ou outra se instale no fundo de uma sílaba, ainda assim ninguém perceberá a dor de ninguém e a tarde se manterá com os seus 21 graus Celsius. é o que você deseja, mãe, e eu não quero atrapalhar a sua paz bravamente conquistada, não quero ser eu a trazer os tubarões para a nossa sala, ao mesmo tempo que uma parte de mim insiste em dizer a sombra do que eu jamais te disse, o fundo das coisas que fiz quando eu era criança, não sei se já pensou sobre isso, mas. há nas crianças. uma maldade tão pura que se torna incontrolável. e quando uma criança se sente ameaçada, bem, ela começa a fazer planos. se une com esse lado instintivo – quase musical – da destruição. há tantos anos, mãe. quando entrei no quarto do bebê que diziam ser o meu irmão, a luz estava apagada. todas as pessoas da casa dormiam: você, papai, nosso cão da época, lembra dele? um vira-lata esperto que depois de tudo foi morar na casa do tio Tecão. visitamos ele uma vez, depois não visitamos mais e eu fingi que chorava no meu quarto quando o papai entrou, fingi que sentia saudade dos nossos ausentes, mas era mentira, mãe, eu estava feliz ao ponto de uma dança quando entrei no quarto, me aproximei do berço e levei até o bebê que você me dizia é teu irmão, você me dizia que a vida agora seria diferente, eu precisava cuidar dele, amá-lo, as horas já não eram minhas e o pior, você não era minha, você, que antes era um corpo todo voltado para a infância dos meus olhos, de repente se tornou alguém que eu via só de costas, eu poderia me transformar em uma árvore que você não notaria, se eu te aparecesse uma pedra você me colocaria na mesa e diria coma tudo, não por mim ou pela minha saúde, mas porque agora eu era um exemplo para o meu irmão. ah, como eu te odiava! eu gostaria de ter arrancado a tua pele, gostaria de ter feito um açougue de você. e nunca te amei tanto. nunca você me pareceu tão suave em seus traços, nunca seus banhos me foram tão oníricos. o pai me doía menos porque naquela época ele não gostava de mim, aprendeu a me amar só depois, como acontece com a maioria dos pais. mas você eu tive desde o começo. e depois de tê-la, eu não sabia mais como viver com você pela metade. por isso entrei no quarto do bebê com a minha febre. e abracei aquele intruso como eu nunca tinha feito. entreguei a ele meus sintomas, contei com a fragilidade de seu corpo. e quando o senti mudando de temperatura, quando percebi seus poros bem abertos. eu o amei, mãe. naquele momento, como se chovesse. eu o amei. e é claro que uma parte de mim não fazia ideia do que viria depois, eu não sabia que você sofreria tanto e que nunca mais voltaria desse lugar onde meu irmão – vivo ou morto – sempre te levava, um lugar que eu jamais alcancei. agora me diga, mãe. se tive mesmo febre um pouco antes do que nos aconteceu. ou se uma criança que sofre se coloca no centro de tudo até mesmo da perda monstruosa que vivemos, essa nossa perda contínua.
tua,
Cassandra.
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