Por Coletivo de Pesquisadores Periféricos do CPDOC Guaianás*: Adriano Sousa, Allan Cunha, Ireldo Alves, Fernando Filho, Nísia Oliveira e Renata Eleutério.
O projeto [Re]memorar: Trajetórias na Zona Leste, idealizado pelo Sesc Itaquera, nasce da parceria com o coletivo de pesquisadores periféricos do CPDOC Guaianás* que, em meio à pandemia, foi marcado com uma lança no peito em sua saga de encontrar as memórias, histórias de lutas e resistências e toda a produção efervescente de arte e cultura na Zona Leste de São Paulo.
A palavra REMEMORAR, que pode significar também trazer à lembrança, recordar, relembrar, para o sentido de lançar luz sobre o passado, remete, ainda, como nos dizeres de Eduardo Galeano: “voltar a passar pelo coração”. E foi com o coração acalorado que percorremos os caminhos da Zona Leste, passando pela Penha, Ermelino Matarazzo, São Miguel Paulista, Itaim Paulista, Itaquera, Guaianases, Cidade Tiradentes, São Mateus e Sapopemba. Levamos conosco câmeras, tripés, luzes, gravadores, máscaras e muito álcool em gel, além do clássico caderninho e caneta na mão para encontrar as singelezas dessas histórias, os momentos difíceis, as descobertas e os desafios dessa gente aguerrida e bravia que, por meio da arte, da cultura e da luta por direitos à existência, vem transformando o território e criando outras espacialidades, outros modos de ser e fazer-se enquanto sujeitos criadores, rompendo com um cotidiano de morte e miséria.
Para começar essa viagem no tempo, este grupo de jovens pesquisadores, do extremo leste, buscou tomar posse dos livros de história oral e encontrou os diversos meios necessários para que o processo de entrevistas e construção dessas fontes, que ora apresentamos ao público, tivessem solidez e, principalmente, tocassem no coração de todas e todos. No entanto, a apropriação dos métodos de história oral, em alguns momentos, esteve em contradição com a linguagem do audiovisual. As luzes, lentes e câmeras circulando pareciam criar um espetáculo para o que queríamos que fosse o mais simples possível, do ser que busca em suas memórias as histórias latentes de sua vida e de sua ação no território. Foram muitas as pausas para dar espaço à sonoridade que emergia da rua, como do carro do ovo, dos entregadores de aplicativo e suas motos, das crianças brincando na rua, da máquina de serrar dos marceneiros, entre tantos elementos sonoros que mostravam a vida e muito trabalho na quebrada. E essa conversa ia tomando outros formatos, de modo que os métodos utilizados foram se diversificando, encontrando outras possibilidades e se fazendo nesse processo, gerando um acúmulo de experiências a cada passo dado.
Enquanto ouvíamos as histórias de cada grupo, artista, liderança comunitária, nos reconhecíamos e aprendíamos a lidar com as nossas dificuldades materiais, com as ansiedades individuais e coletivas desse percurso e assumimos, também, a nossa condição: de que registrar a história e a memória dos nossos por nós mesmos, enquanto filhas e filhos da classe trabalhadora, não poderia ser diferente da nossa realidade, assim como das coletividades que fomos ao encontro. Ou seja, tínhamos que lidar com a dureza do que é estar com o pé no barro e em meio ao sol escaldante. A lama vai se enrijecendo e pesando sobre nossas pernas, tornando as passadas cada vez mais difíceis e, mesmo assim, seguíamos na busca por um rio para nos banhar.
No trajeto pela Zona Leste, apesar de tanto asfalto e concreto armado, foram muitos os rios, as bicas e os afluentes que encontramos. Cada encontro teve sua particularidade, nos surpreendemos com histórias de grupos que temos relações e parcerias há anos, porém, não se tratava de chegar e já saber o que encontraríamos, mas de uma descoberta contínua, sem concepções apriorísticas, apenas com os olhos e ouvidos atentos para não perder uma imagem sequer dessas memórias flamejantes e vividas.
Assim, viajamos no tempo por este imenso vale, perpassando por grupos com mais de 30 anos de existência, como no caso do Pombas Urbanas; por espaços e associações de moradores mais enraizados, como a Associação de Moradores e Amigos do Jardim Helian, com o jovem líder comunitário Mohammed; e junto ao Varre Vila, na Comunidade Santa Inês, em sua busca de revitalizar a comunidade e fomentar outras formas para a destinação do lixo urbano. Até encontrar os mais novos, que ainda estão descobrindo o seu fazer, a sua identidade, como os jovens da Vórtice Filmes, no Itaim Paulista.
As origens desses grupos articulam questões desde as lutas por melhorias nos bairros, as necessidades emergentes de uma unidade básica de saúde, uma casa de cultura, um espaço de formação para jovens. A luta por reconhecimento das pessoas com deficiência por sua autonomia e inserção nas políticas de acessibilidade, mas também de gênero e sexualidade. Tal como na atuação de Ivone, criadora do Blog Gata de Rodas, aborda de maneira crítica a sua mobilidade pela cidade, enquanto cadeirante, a relação de tutela por parte da família e do Estado e a consequente falta de autonomia sobre as decisões de sua vida, o que envolve também todo seu engajamento nas lutas LGBTQIA+. Encontramos sujeitos e sujeitas que tiveram sua formação junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o que gera outras referências de atuação crítica e engajada com as questões sociais, tais como os grupos: Rosas Periféricas, Semente Crioula e Periferia Preta. Este último articula a sua ação de produção cultural ligada às temáticas de classe, raça e gênero e faz referência aos mutirões de moradia que ergueram com o suor do trabalho o habitar de parte da Fazenda da Juta.
Gravação com o Fórum de Cultura Zona Leste. Foto: Rodrigo Nobre
A relação com as linguagens artísticas também é um propulsor da formação dessas coletividades, como o Circo Teatro Palombar; a Casa Poética e os Mesquiteiros com a poesia e literatura; a Vórtice Filmes com o audiovisual; Quebrada Instrumental com a música; Batakerê e Semente Crioula com as manifestações da cultura popular, dança e batuque; o grupo Rosas Periféricas e o Pombas Urbanas com o teatro; o grupo OPNI e sua Favela Galeria, que utilizam do grafite para estampar, nas casas de autoconstrução e barracos, um mural com as imagens do povo preto, pobre e periférico, como um espaço de reconhecimento e construção de identidade; a Kitanda das Minas, uma empresa que tem sua origem ligada às Mulheres de Ori na Cidade Tiradentes, esta, por sua vez, relaciona sustentabilidade e empreendedorismo a partir da gastronomia e da criação de um buffet com comida tipicamente africana e brasileira.
Além das lutas por direitos e a relação com as linguagens artísticas, a necessidade histórica do espaço físico mobilizou diversos grupos a constituírem seus espaços mediante a ocupação de locais abandonados, públicos ou particulares com processos judiciários e que estavam sem uso, sem função social e em lugares com altos índices de violência e tráfico de drogas, essas quebradas foram sendo ressignificadas pelos grupos culturais de forma independente que se tornam aglutinadores de tantas outras coletividades, como a Okupação Cultural Coragem, de Itaquera, e a Ocupação Cultural Mateus Santos, no Ermelino Matarazzo. Também o Centro Cultural Arte em Construção que era o antigo supermercado Tatá, na Cidade Tiradentes, e foi ocupado pelo Pombas Urbanas, que resiste com o apoio da comunidade desde o começo dos anos 2000, há pelo menos 20 anos.
A busca pela constituição de um espaço de referência para socialização das manifestações culturais e criação artística levou os grupos a encontrarem diversas estratégias, além da ocupação, o compartilhamento de galpões com outras coletividades, aluguéis e compras de casas, e há os que encontraram nas garagens o local para consolidar o seu espaço. Este é o caso do São Mateus em Movimento, que teve na casa da Dona Vera – mãe do Negotinho – um dos fundadores, a articulação de grupos, linguagens e atividades como grafite, rap, capoeira, saraus, barbearia-escola e educação popular, com oficinas, biblioteca, sala de informática aberta à comunidade e cursinho pré-vestibular. Existe igualmente A Casa Amarela, cedida pelos integrantes do grupo para formar um centro cultural, com o desenvolvimento de linguagens artísticas como a literatura, o teatro e a música. Local que mantém viva a memória do Movimento Popular de Arte (MPA) de São Miguel Paulista, da década de 1970. Temos também o Memorial da Penha, local onde está sediado o grupo Ururay Patrimônio Cultural e é uma casa cedida pelo morador Francisco, que compartilha o espaço para abrigar a história e memória do bairro entre tantos outros exemplos que constituíram seus espaços e os mantém com o brilho nos olhos.
Essas ações vão se confluindo em redes e movimentos culturais regionais, como o Movimento Cultural de Guaianases, Movimento Cultural da Cidade Tiradentes, Movimento Cultural de Ermelino Matarazzo, Movimento Cultural da Penha, e se ampliam com representações pela cidade, como o Fórum de Cultura da Zona Leste e o Movimento Cultural das Periferias, os quais condensam as reivindicações de todas as coletividades e passam a fazer disputa por fundos públicos descentralizados.
Por uma preocupação com a população da quebrada, diante da pandemia do COVID-19, os grupos e espaços culturais se mobilizaram em redes de solidariedade, nas quais focaram suas ações em levantar doações de cestas básicas, produtos de limpeza e higiene para entregar à população, ações compreendidas pela maioria como necessárias e essenciais nessa crise sanitária de saúde, mas que está mediada pelas crises econômica, social e política que o país atravessa. Simultaneamente, fortaleceram uma rede de artistas que, além da doença e morte de muitos entes queridos, sofreram com a fome, o desemprego, o despejo e as diversas nuanças dessa crise social.
O pulsar dos coletivos culturais na periferia da cidade de São Paulo tem abarcado um período histórico que segue desde 1990, com momentos mais ascendentes como entre 2010 e 2015. Apesar da heterogeneidade presente na linguagem, concepção estética, princípios, ainda assim há um percurso comum em que articulam ação política, organização e transformação social por meio das ações desses(as) sujeitos(as) políticos que, conforme ressaltou Érica Peçanha (2006), “entram em cena”, sujeitos(as) que estiveram “invisibilizados” dos processos sociais e históricos, tomaram para si a posição de mudança social por meio da arte e da cultura. Em outras abordagens, como a de Paulo Arantes (2012) e Terezinha Ferrari (2014), evocaram a categoria da “cidadania” para apreender essa atuação pulsante dos movimentos políticos e culturais. De outro modo, Tiarajú Pablo D’Andréa (2013) denominou como sujeito periférico os indivíduos que, com sua ação política, redefinem a concepção de periferia, que primeiramente era apreendido como forma de identificar a localidade, depois como sinônimo de pobreza e violência, em seguida incorporado pelos “pobres e violentos” como sinônimo de orgulho e pertencimento. Em tal contexto histórico, a periferia aparece como um território urbano que designa a possibilidade de uma identidade para seus moradores. Essa identificação com o território, outrora negada pelos próprios moradores, foi apropriada e potencializada a partir do fazer artístico e de produção cultural pelos jovens e moradores da periferia.
Entrevista com o Favela Galeria. Foto: Rodrigo Nobre
De modo geral, percebemos que a atuação cultural, sobretudo na periferia, constitui-se de ações voluntárias, solidárias e autônomas que necessitam da tomada de consciência de seu lugar social. Assim, os coletivos surgem como expressões que não somente reivindicam os espaços que lhe foram negados, mas criam outras espacialidades, tomam para si a ação de fomentar e transformar sua realidade por suas próprias forças e, com isso, transformam não apenas a si mesmos, mas interferem no espaço público e nas relações com os outros espaços e sujeitos sociais. Essas ações possibilitam ocupar um lugar de constante disputa ideológica contra a massificação da produção artística e de disputa pelos fundos públicos da cidade. São resíduos que, no sentido evocado por Henry Lefebvre (1991), atuam localizados, mas, em larga escala, são muitos, são riachos grandes que vão criando ramificações e tomando conta das várzeas.
Até aqui a noção de ação política, território, tomada de consciência e transformação social são os elos importantes que fomentam diversos debates teóricos e práticos da vida. Entretanto, falta outro elemento que pode ampliar essas noções, que é a dimensão da memória. Ao perguntar para os grupos como eles registram suas próprias histórias, se já desenvolveram trabalhos que envolvam a história e memória do bairro, grupo e ou pessoas, ou ainda, o que guardariam num museu que seja algo significativo de sua história, surgem as pausas e questionamentos que trazem reflexões as quais compreendemos ser fundantes para a continuidade e futuro do grupo – uma autorreflexão de seu próprio processo pela ativação da memória.
A relação entre os integrantes dos grupos, os valores e significados estabelecidos por eles vão constituindo outras identidades individuais e coletivas, que geram percepções diferentes dos seus corpos no espaço. O sentimento de pertença a um coletivo que permeia o tempo de sua existência na vida é o estar e perceber o outro, ouvir e assimilar as outras existências e, muitas vezes, trazer à memória aquilo que não se sabe mais se é seu ou do outro: a própria experiência. O laço de relações estabelecidas nos coletivos gera ambiguidades sobre seus percursos, ao mesmo tempo em que se fortalecem em uma identidade comum, encontram apoios e subsídios de desenvolvimento que alargam a experiência de cada indivíduo. O coletivo é a força, o tempo e o espaço presente para a maioria desses(as) sujeitos(as) que tomam a experiência da linguagem e do fazer cultural, em muitas ocasiões, como o principal trabalho. Realizam o trabalho criativo sem amarras e controlados apenas por sua criatividade e autonomia, distante da lógica do capital que não consegue dominar e controlar, de modo que aquilo que produzem não tem valor de troca, somente valor de uso, o que possibilita uma insurreição das formas de apropriação da produção que socializa em vez de individualizar e privatizar como é recorrente nesse sistema capitalista.
Mas trazer as lembranças e historicidades dessas coletividades é arriscar-se, não por acaso, as narrativas buscam pelos marcos temporais e espaciais, sendo elementos referentes de suas recordações mais concretas, mas também um subterfúgio das lembranças que começam a ser afloradas e trazem sentimentos vividos, em certos casos, difíceis de lidar. A manifestação das memórias faz isso conosco, nos coloca em risco de desvelar nossos sentimentos, angústias ainda presentes, mas adormecidas. Os grupos, no exercício de nos contar suas histórias, verbalizam o seu tempo e espaço presentes, as referências mais próximas e, de certo modo, trazem a historicidade oficial de cada grupo. Porque buscar as lembranças de uma coletividade significa lembrar e refletir sobre a sua própria constituição enquanto indivíduo e coletividade. O que pode ocasionar a demarcação de espaços, pessoas, momentos que não estão na historicidade oficial balizada pelo grupo, também pode-se incorrer no risco de invisibilizar pessoas do passado, sem o reconhecimento devido, seja pelos conflitos de relação ou por um apagamento histórico que o grupo legitimou no percurso.
Não há evocação sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. /…/ Uma lembrança é um diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, ela seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (Ecléa Bosi, 1987, p. 81).
Assim como ressalta Ecléa Bosi, é preciso lapidar o diamante bruto pelo espírito e o salto sobre a história e a memória dessas coletividades entoam outros sentidos, possibilitam outros movimentos na nossa sociedade, porque o tempo de lembrar é o tempo de refletir e, como diria Marilena Chauí (1987), é o “tempo de refazer-se”. Passado e presente se reencontrando e fomentando com os acúmulos e superações um novo porvir.
Gravações com a Gata de Rodas. Foto: Rodrigo Nobre
Portanto, entendemos que reconstruir o passado é refazer-se, é legitimar histórias e momentos, superar sentimentos, elaborar as formas futuras e, inclusive, levantar-se em questão: como salvaguardar o que construímos hoje? A memória se coloca como um substrato da identidade social, que tem, igualmente, a função de evitar que o presente se transforme em um processo contínuo, desprendido do passado e descomprometido com o futuro. Neste sentido, assim como a afirmação de Eduardo Galeano, “a memória é um ponto de partida com desejo de ventos e profundidades”, este projeto traz outros ventos para o território da Zona Leste.
* O CPDOC Guaianás é um coletivo de jovens pesquisadores periféricos, oriundos das organizações populares, que se reúnem para pesquisar, levantar e narrar a história, memória e o patrimônio dos trabalhadores no extremo leste da Cidade de São Paulo.
Bibliografia
ARANTES, Paulo E. “A Lei do Tormento” in, Teatro e Vida Pública. Desgranges, Flávio e Lepique, Maysa (Orgs). São Paulo: Hucitec: Cooperativa Paulista de Teatro, 2012.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CHAUÍ, Marilena S. Os trabalhos da memória in, Memória e sociedade: Lembranças de Velhos. Bosi, Ecléa. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
D’ANDREA, Tiarajú. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tese de doutorado em sociologia. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
GALEANO, Eduardo. O Livro dos abraços. 9. Porto Alegre: Ed. L&PM, 2002.
_________________ As palavras andantes. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1994.
FERRARI, Terezinha. Trabalho e Subjetividade no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Ed. Porto de Ideias, 2014.
LEFEBVRE, Henry. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ed Ática S, 1991.
PEÇANHA, Érica. Literatura marginal: os escritores da periferia entram em cena. Dissertação de Mestrado USP, 2006.
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