Saberes ancestrais atravessam propostas que, em eventos como a Bienal Sesc de Dança, vêm celebrando pluralidade de corpos e estéticas.
Leia a edição de setembro/23 da Revista E na íntegra
Por Karla Dunder
O movimento está em todo canto, mas, no corpo, ele ganha formas, traduz pensamentos, sentimentos e ideias. Há muitas maneiras de dançar, como aquelas que vêm das tradições indígenas ou que nascem nos terreiros das religiões afro-brasileiras. É na pluralidade de corpos e de intencionalidades que o movimento se expressa, funde-se com o tempo e desloca o mundo de quem dança e de quem é impactado por esta linguagem artística.
Ao evocar o passado e vislumbrar possibilidades de futuro em cada passo, a dança contemporânea vem mostrando sua potência ao usar o movimento para catalisar existências, resgatar saberes e guardar memórias ancestrais, como é o caso de várias propostas selecionadas para se apresentarem durante a Bienal Sesc de Dança, que acontece neste mês, em Campinas (SP).
Adnã Ionara, pesquisadora e artista da dança, entende o corpo como uma máquina do tempo, um lugar que, ao se movimentar, guarda as memórias ancestrais. Na coreografia de C A C U N D A, Adnã volta às suas origens, buscando inspirações a partir do que chama de “sabências da avó”. “Minha proposta é entender essa encruzilhada em que começo, meio e continuidade habitam o mesmo momento. De que maneira a gente corporaliza o tempo? Como a gente pode entender esse corpo funcionando como uma máquina do tempo – esse corpo que carrega e traz memórias de nossos ancestrais?”, questiona a artista.
A palavra cacunda é uma metáfora da passagem do tempo, é a imagem do corpo que vai se abaulando com o decorrer dos anos. Na tradição da umbanda – religião afro-brasileira e fonte de inspiração para a pesquisa cênica de Adnã –, “a cacunda vai se formando a partir do tanto de experiências que a gente carrega, do tanto que se vive. É o acúmulo de histórias e trajetórias”, explica. “A cacunda acomete, também, pessoas que fazem o bem, mas que pelas costas rogam pragas.” Entre os vários significados da cacunda, a coreógrafa buscou a imagem de uma das entidades mais antigas do culto da umbanda: a Cacurucaia, uma pomba-gira capaz de circular por várias giras (reuniões) e diferentes energias. “Uma mulher encurvada que faz bem a aqueles que pedem o bem, e faz feitiços, se lhe for pedido”, descreve Adnã.
C A C U N D A será apresentada na Bienal Sesc de Dança, e se desenvolve a partir das figuras da memória ancestral de Adnã. Além dessa referência, a coreografia também dialoga com obras literárias, especificamente Um Defeito de Cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, e Becos da Memória (2017), de Conceição Evaristo. Outra referência importante está na sonoridade do álbum Padê (2008), de Juçara Marçal e Kiko Dinucci. “Dentro do terreiro não tem música sem dança, ou dança sem música. No meu processo criativo, ambas são uma coisa única. Busco a integração entre essas expressões artísticas”, conta Adnã, que criou seu novo trabalho a partir das inquietações surgidas durante as aulas da faculdade de dança e do mergulho nas pesquisas que começaram em Imalè Inú Ìyágba, coreografia presente na programação da última Bienal Sesc de Dança, em 2021.
Para as religiões de origem africana, a dança é a harmonia entre o físico e o sagrado, o presente e o passado. “É o lugar de materialização da ancestralidade. Aprendi os movimentos com a minha avó e com a minha mãe, que contam histórias de antepassados primordiais, como os orixás, e até mais próximos, quando falamos da diáspora, da vinda [da população do continente africano] em forma de sequestro”, recorda Adnã.
A coreógrafa busca entender esses movimentos também nas danças contemporâneas. Além das memórias afetivas e da vivência religiosa, Adnã usa como referência o conceito de “escrevivência”, cunhado pela escritora Conceição Evaristo. O termo é a junção das palavras “escrever” e “vivência”: a ideia de contar histórias absolutamente particulares, mas que remetem a experiências coletivas. A escrevivência é um referencial para a inspiração de Adnã, que conclui: “Minha dança é individual, porque a minha subjetividade é única, mas é coletiva porque estamos no mesmo contexto”.
VIVÊNCIAS PRÓPRIAS E COLETIVAS. Para a pesquisadora Deise de Brito, há muitas formas de abordar a questão ancestral em cena. Em seu trabalho, ela investiga as relações entre corpo e ancestralidade, e reúne registros escritos de produções de pessoas negras nas artes cênicas, na plataforma Arquivos de Okan. O primeiro ponto, segundo Brito, é entender que a ancestralidade atravessa todas as culturas e tem relação com os saberes e práticas de quem existiu antes de nós. “A ancestralidade é o lugar das existências que fomentaram saberes, relações e tramas de existência que chegam até nós”, explica. A partir desse conceito, a relação que cada pessoa vai ter com a sua ancestralidade é particular e subjetiva.
O candomblé, por exemplo, que é uma religião afro-brasileira, compartilha um modo que abrange um conjunto de rituais para que o indivíduo se relacione com os lugares ancestrais. “O corpo é ancestralidade. Eu sou a Deise, mas me ocupo com muitas outras existências que chegaram antes para que eu estivesse aqui. E nas artes cênicas, a gente vai encontrar muitos modos de produção para abordar esse lugar ancestral”, observa.
Em cena, a dança nasce a partir do repertório e das vivências de cada um. Não existe um modo único de abordar a ancestralidade e as memórias. “Mesmo tendo similaridades, somos pessoas muito diversas e com desejos diferentes no palco. Ora esses desejos vão passar por estéticas consideradas negras, ora por estéticas que não são consideradas afro-referenciadas, e está tudo bem. Mostra justamente o quanto temos anseios infinitos em relação à nossa produção cênica”, reflete a pesquisadora.
DANÇA COMO ENTIDADE. Essa memória que está presente nos corpos dos bailarinos foi o que chamou a atenção do coreógrafo Luis Arrieta. No registro em vídeo de um encontro entre amigas – bailarinas que participavam do Balé do IV Centenário –, um detalhe chamou-lhe a atenção. A bailarina Neide Rossi fez um gesto de agradecimento às amigas. Um gesto conhecido do balé. Todas repetiram com a mesma suavidade e delicadeza. “Aquela cena deixou claro pra mim que o corpo guarda saberes, a dança foi sendo passada ali de uma para outra, como uma espécie de entidade”, recorda Arrieta. Essa foi a semente para Corpos Velhos – Pra que Servem.
A coreografia, que também será apresentada neste mês, na Bienal Sesc de Dança, reúne em seu elenco figuras que participaram da construção da história da dança brasileira, como Célia Gouvêa, Décio Otero, Iracity Cardoso, Lumena Macedo, Marika Gidali, Mônica Mion, Neyde Rossi e Yoko Okada. “Pessoas importantes para a dança de São Paulo e que continuam atuando, trabalhando”, conta o coreógrafo. “São artistas com quase meio século de experiência, que compartilham com o público, por meio de gestos e movimentos, os saberes acumulados ao longo da vida”, acrescenta.
Corpos Velhos – Pra que Servem surgiu de um questionamento: “Onde estão os corpos velhos na dança?” Para Arrieta, o espetáculo tem um aspecto radical porque rompe com a ideia de que só os jovens podem ocupar os palcos. “O público verá pessoas idosas em cena, as consequências no corpo de muitos anos de imersão na dança, e terão a oportunidade de compartilhar essa experiência.”
JOGO DE CENA. Cadê ela? Cadela? O jogo de palavras pode ser o ponto de partida e um convite inusitado para assistir à intervenção Ka’adela – Ação coletiva de contra-ataque, que também integra a programação da Bienal Sesc de Dança 2023. Inspirada na palavra de origem tupi, a proposta do multiartista Juão Nyn, junto a Idylla Silmarovi e aos integrantes da Plataforma Ka’adela, é refletir sobre a ancestralidade e a busca pelas origens. O trabalho é um espaço aberto para artistas de diferentes linguagens resgatarem memórias e histórias a partir de alguns questionamentos: qual legado dos nossos antepassados trazemos para nossas vidas hoje? Como as tradições e a memória estão presentes na atualidade?
“Ka’adela” nasce desse jogo de palavras e inquietações, pode ser ‘cadê ela’? Cadê a nossa ancestralidade? Ou mesmo cadela, uma vira-lata que está por aí. Sinto que estamos no mundo, mas não somos vistos e partimos para a discussão: de qual ancestralidade estamos falando?”, pergunta Juão Nyn. A ideia é romper com os modelos eurocêntricos conhecidos e procurar, no passado, nossas origens. “Buscamos uma transformação, deixar as referências do mundo colonial que ainda estão muito presentes. Para isso, utilizamos diferentes linguagens a fim de resgatar a ancestralidade do movimento no corpo,” explica o multiartista.
A intervenção Ka’adela surgiu em 2021 como um trabalho de pesquisa para discutir quais imagens do passado estão presentes nas ruas erguidas em monumentos. Quais memórias estão sendo preservadas, e quais estão presentes nos corpos, mas não estão presentes na iconografia da cidade? A partir dessa inquietação, Juão Nyn passou a questionar, principalmente, os monumentos que prestigiam figuras históricas do Brasil Colônia. Fruto dessa investigação, já teve monumento disfarçado e até praça rebatizada.
Durante a Bienal Sesc de Dança, a proposta de Nyn é convidar artistas de diferentes linguagens e origens para uma residência que se aprofunde no compartilhamento de metodologias e ideias. O ponto de partida será o Monumento à Mãe Preta, na região central de Campinas (SP), um local que, no passado, foi palco para o enforcamento de pessoas pretas e indígenas. Agora, o espaço será ocupado por artistas que trazem à tona a história, a ancestralidade e um novo olhar para o local, numa espécie de “sonho coletivo”, como define Juão Nyn.
Campinas recebe 13ª edição da Bienal Sesc de Dança, com mais de 60 atividades que celebram pluralidade de movimentos, corpos e estéticas.
Ancestralidade, segundo o dicionário, é entendida como o legado dos antepassados. Um mergulho na memória, uma busca pelas origens e raízes, beber na fonte da sabedoria dos mais velhos, mas com um olhar em sintonia com as questões deste tempo. Dessa ponte entre o hoje e o ontem, surgem novos movimentos inspirados pelas danças originárias de matrizes africanas, dos terreiros e das tradições indígenas.
Uma dança que também constrói pontes com diferentes linguagens, como o teatro, a música e a literatura. Assim, a Bienal Sesc de Dança, que neste mês ocupa a cidade de Campinas (SP) em sua 13ª edição, apresenta mais de 60 atividades, entre espetáculos, performances, instalações e ações formativas, inspiradas em diferentes tempos e tradições. Entre os dias 14 e 24/9, a Bienal, que volta ao formato presencial após a pandemia de Covid-19, oferece um amplo leque de trabalhos nacionais e estrangeiros, vindos de países como África do Sul, Chile, Coreia do Sul, França, Ruanda, Síria e Suíça.
Maitê Lacerda, assistente de dança da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo e integrante da equipe curatorial da Bienal de Dança, conta que, neste ano, “a curadoria buscou viabilizar um festival que possa ser vivido como experiência comunitária, gerando encontros e conexões entre artistas e públicos da dança”. Talita Rebizzi, que é colega de Maitê no Sesc e também compõe a equipe de curadores da Bienal, aponta que a programação desta edição “propõe um olhar que contempla diversos contextos de dança no Brasil e no mundo, revelados na forma de passinhos, danças de luta e resistência, tradições clássicas e contemporâneas, além de diversas fusões e inventividades que o corpo assume para ser e contar suas histórias”, finaliza.
Confira destaques da programação da Bienal Sesc de Dança:
Ato 1 (Brasil)
Estreia do grupo SalaMUDA, na qual bailarinos e músicos mergulham no cotidiano dos corpos pretos, explorando a busca por reconhecimento, em contraste com uma realidade marcada pela violência, apagamento de narrativas e negação de identidades.
Dias 19 e 20/9. Terça e quarta, às 20h. CIS-Guanabara.
Clamores | Clamors (França e Síria)
Refugiado na França, o bailarino sírio Mithkal Alzghair questiona, por meio da dança, o confronto entre o homem e as autoridades. A partir de uma exploração figurativa, escultural e cinética, o solo de Alzghair cria o retrato de um corpo diante de um mundo cercado por formas de dominações e ameaças.
Dias 23 e 24/9. Sábado, às 21h30. Domingo, às 20h30. Galpão do Sesc Campinas.
Bienal Sesc de Dança
14 a 29 de setembro. Confira a programação completa e informações sobre ingressos.
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