Leia a edição de FEVEREIRO/24 da Revista E na íntegra
Por MARIA JÚLIA LLEDÓ
Filha de arquitetos, Joana Lira cresceu num ateliê a céu aberto. Cercada por expressões artísticas diversas, enveredou pela graduação em design no Recife (PE), mas sempre com a verve das manualidades – a exemplo da estamparia, da cerâmica e da serigrafia. Artista pernambucana que, como ela mesma define, trabalha com artes visuais e “design de afeto”, mudou- -se para a capital paulista em 1999 e, desde então, pesquisa suportes diversos: do feito à mão ao meio digital em projetos que convidam a uma expansão dos sentidos.
Pássaros, mandacarus, mulheres, seres oníricos e outros personagens habitam xícaras, pratos, roupas de cama e de vestir. Sua arte subiu até mesmo a empena de um prédio no Parque Minhocão, Centro de São Paulo, com os dizeres: “Hoje não vão me ferir”. Joana também desenvolveu a identidade visual de uma das festas mais populares do Brasil, o Carnaval do Recife, de 2001 a 2011 [com um hiato em 2004], junto ao pai, o arquiteto Carlos Augusto Lira. Enquanto se prepara para cair na folia pernambucana, para a qual preparou, neste ano, o desenho da camiseta que vestirá os brincantes da centenária troça Cariri Olindense, a artista conta os tijolos de sua trajetória, narra seu envolvimento com o Carnaval e reflete sobre seu processo criativo e as fronteiras entre design e arte.
Venho de uma família em que todo mundo é arquiteto, mas eu achava que a arquitetura tinha uma certa rigidez. Já adolescente, minha mãe [Bete Paes] começou a trabalhar com design têxtil e estamparia. Na época, ela era casada com Petrônio Cunha, que é um grande designer de Olinda (PE) e fez muita coisa para a cidade, como tipografias, e para o Carnaval – identidade visual de bloco e até sinalização. Eu cresci dentro dessa cozinha criativa. Brinco que eu tenho um tripé de formação fora a faculdade de design: essa mãe muito curiosa, moderna e atenta ao mundo, à música, à moda, e também foliã; um pai arquiteto e colecionador de arte – atualmente, ele tem, em média, 4 mil peças, muitas de arte popular; e Petrônio, que tinha esse ateliê dentro de casa. Então, eu cresci com essa diversidade de coisas acontecendo.
O que me chamou atenção foi a criatividade [da família]. Entendi que eu gostaria de permear lugares, por isso meu início foi de experimentar, fosse o suporte do tecido – trabalhando um pouco com minha mãe – ou depois quando fiz um estágio no escritório de design Ouriço, bem na época efervescente do [movimento de contracultura] manguebeat. Nesse escritório, não existia ainda, exatamente, o digital, então era tudo feito à mão. Eu tinha 17 anos. Para coroar tudo isso, eu ainda caí numa turma de design muito diferente. Metade da turma realmente vinha de vestibular, e a outra metade vinha de cursos diversos: medicina, química, publicidade, jornalismo e arquitetura. Pessoas que traziam bagagens e olhares muito diferentes.
O Carnaval está tatuado em mim. E o meu Carnaval do coração é o de Olinda, onde minha mãe morou. Então, tinha essa coisa de ver a cidade se montando, as fitas, as luzes, os ensaios… Eu ficava tão nervosa que tinha febre na sexta–feira de Carnaval. Sou aquela pessoa que tem três fantasias por dia, vou comprando as coisas e invento na hora. Essa brincadeira faz parte da minha identidade. Para mim, o mais difícil foi participar dos bastidores desta festa. O primeiro Carnaval de Recife que fiz, eu já morava em São Paulo, era 2001, e eu fiz até 2011. Eu tinha um ateliê, onde mal cabia uma mesa, e fazia desde pintura em xicrinhas a peças de 30 metros de altura para o Carnaval. Houve um pensamento em conjunto, muita gente querendo fazer a coisa acontecer, uma equipe enorme de criação. Nunca fiz o Carnaval de Olinda, mas faço muita coisa para os blocos. Para 2024, fiz a identidade da camiseta do Cariri Olindense, uma troça que tem 103 anos. Agora, eu só entro na gandaia.
Meu trabalho só tem função se ele transforma. Para mim, esta é a base: permear esse lugar da função com a emoção e a cultura.
De 2001 a 2011 [exceto em 2004], Joana Lira foi responsável pela criação da identidade visual do Carnaval do Recife. Foto: Tiago Lubambo
Para mim era muito fácil desligar e ligar essa chave do suporte, e eu acho que a coisa que mais me encanta – e estou com 47 anos – é que sempre estou olhando a minha trajetória a fim de entender para onde eu quero apontar e também o que é que me encantou nesse percurso. Eu acho que a coisa mais latente é aprender coisas. Eu adoro fazer projetos diferentes, acontecendo ao mesmo tempo, com clientes diversos, formatos, desafios. Eu brinco que adoro fazer o que eu nunca fiz. Mesmo quando tem aquela angústia, quando é aquele caroço de abacate que eu não consigo engolir, quando a gente tem que aprender, e esse “ter que aprender”, para mim, é muito sedutor, ele me movimenta muito.
Não vejo o briefing como algo limitador. Na verdade, eu o vejo como parâmetro. Por exemplo, se eu tenho uma limitação, seja de tema, de suporte ou de técnica, eu vou mergulhar, aprender aquilo, aprender quais são as minhas limitações e onde que eu me amplio dentro daquele projeto. Aquilo vira, então, meu cenário e eu não me sinto tolhida, porque em hora alguma quero entrar num trabalho impondo minha visão. Essa vaidade eu não tenho. Até gosto de trabalhar com parâmetros, com coisas com as quais eu preciso me adaptar. Isso faz com que eu tenha que tirar leite de pedra. Por isso, eu gosto dessas primeiras conversas de processo, de botar tudo na mesa, de entender quais são as limitações que a gente tem, o que é que precisa ser feito e o que desejam de mim.
Depois que eu me formei, fui muito para essa manualidade. Era tudo realmente feito à mão, ou seja, cada peça era única. Só que, como negócio, essa peça única começou a ficar inviável. E comecei a ver isso quando inventei de participar de uma feira de design. E eu não quero pegar uma porcelana pronta e fazer uma intervenção na superfície. Eu quero pensar o molde e fazer tudo. Porque sou essa pessoa: se é para mergulhar, vamos lá no fundo. Aí fui fazer a feira: vendi de norte a sul do país. O que aconteceu? Eu passei um ano fazendo a mesma coisa, que é o que eu mais detesto na vida. Quase enlouqueci. Foi aí que entendi que tinha que trabalhar com decalque. Então, eu tinha que ir para o digital para pensar o decalque. Para o Carnaval, também era tudo digital. É difícil quando você tem uma linguagem gráfica que você maturou, que as pessoas já reconhecem. Mas, eu estou a toda hora me cutucando. Foi aí que voltei para o meu caderno. E com o nanquim, porque o traço preto tem uma coisa mais definida, fica mais fácil de digitalizar e de tentar passar essa desenvoltura da mão, que é completamente diferente, para o tablet.
Essa coisa do produto, de vender muito… Eu tenho milhares de crises do tipo: mas por que a gente ainda precisa fazer coisas? Ao mesmo tempo, penso: como eu vou viver? Estou transformando alguma coisa? Eu tenho uma parceria criativa de 14 anos com a Tok & Stok. Criei pratinhos, fronha, pano de prato… E a gente está nesse mundo da rede social, onde recebo muita mensagem das pessoas contando a importância daquele prato que foi dado para a mãe e é de linhas antigas, que o prato quebrou, e me contam toda a história. Quando tem essa parte da emoção, essa parte que toca, eu penso: dá para continuar fazendo, produzindo e inventando produtos. Meu trabalho só tem função se ele transforma. Para mim, esta é a base: permear esse lugar da função com a emoção e a cultura.
Ouça, em formato de podcast, a conversa com a artista visual Joana Lira, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 13 de
dezembro de 2023. A mediação do bate-papo é de Rogério Ianelli, gerente da Gerência de Artes Gráficas do Sesc São Paulo.
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