Um sobrevoo pela Bela Vista, distrito paulistano no qual o novo e o tradicional convivem e onde, neste mês, pousa o Sesc 14 Bis
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Saracura é uma ave que se caracteriza por pernas finas e que, segundo os saberes populares, vive solitária e sabe se esconder, bem como a seu ninho, mas cujo voo não alcança grandes altitudes. Saracura é também nome de rio que não se vê em terra de Bela Vista. Rio encoberto, rio esquecido. Saracura nomeia ainda um quilombo urbano no coração de São Paulo, redescoberto ao remexer da terra na construção do transporte-símbolo do progresso na grande metrópole, num processo que traz consigo histórias de apagamento, que finalmente podem ser revisitadas e celebradas. Assim pulsa a Bela Vista, bairro cravado na região central da capital paulista, onde moderno e antigo se encontram, a diversidade é marca e as contradições coexistem.
Resultado do processo de expansão urbana ocorrido no município a partir do século 18, o território possui, hoje, uma das facetas mais diversificadas da capital. Se por um lado a região concentra o Morro dos Ingleses e os arranha-céus da numeração par da Avenida Paulista, por outro, abriga o célebre Bixiga, permeado por ruas e casas que preservam seu traçado original, além de variados equipamentos culturais. Foi neste distrito paulistano que se instalou, no século 19, o Quilombo Saracura, primeiro a ser reconhecido na cidade.
“Todos esses espaços contribuem para a vocação natural do bairro, que sempre foi a de ser uma potência cultural, bem como de diversidades. A partir dessa pluralidade é que nascem os espaços culturais: notem que eles são bem diferentes entre si, mas sempre dialogam e, de certa forma, retroalimentam-se”, avalia Luiz Tim Ernani, produtor cultural e diretor executivo do Museu Memória do Bixiga (Mumbi), entidade fundada em 1981, com sede na Rua dos Ingleses.
Será no meio deste mosaico cultural chamado Bela Vista – que hoje abriga, aproximadamente, 73 mil moradores -, que a partir deste mês nasce o Sesc 14 Bis. A nova unidade do Sesc São Paulo ocupará o prédio que sediou a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP). É lá também que fica o Teatro Raul Cortez, que agora passa a integrar a nova unidade do Sesc. No mesmo edifício encontra-se, ainda, o Sesc Memórias e o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.
A Bela Vista é atravessada por corredores viários de grandes dimensões, como as avenidas 23 de Maio e Nove de Julho, e se constitui como um símbolo do imaginário cultural da cidade. A lista é extensa: fazem parte do território o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), o Museu dos Óculos Gioconda Giannini, o Teatro Sergio Cardoso, o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, o Teatro Ruth Escobar, a Igreja de Nossa Senhora da Achiropita, a Casa Mestre Ananias, o Centro Cultural Vila Itororó, entre outros espaços.
Importante área verde da região, as praças Gino Struffaldi (abaixo do viaduto) e 14 Bis (vizinha e mais à frente da obra do metrô) foram revitalizadas pela prefeitura em parceria com a Fecomercio-SP, e reinauguradas em 2018. Localizada sob o Viaduto Dr. Plínio de Queirós, a área que reúne as duas praças possui 7 mil e 500 metros quadrados e se tornou um respiro para moradores e turistas que usufruem de passeios por entre espécies de árvores nativas e fazem uso de equipamentos de lazer.
É de 1558 o primeiro registro do bairro, antes nomeado como Sítio do Capão e Chácara das Jabuticabeiras. No final do século 18, o território ganhou outro nome: Campos do Bexiga, em referência ao proprietário rural Antônio José Leite Braga, dono de uma hospedaria no Largo dos Piques, hoje Praça da Bandeira – ele fora acometido pela varíola, à época popularmente chamada de bexiga. “São Paulo sofreu vários surtos de varíola durante sua história (…) vem daí a hipótese de que o local tenha servido de refúgio aos bexigosos, dando o nome ao bairro”, escreveu a historiadora Nádia Marzola no livro Bela Vista (Prefeitura de São Paulo, 1985). “Já (o historiador) Afonso A. de Freitas traz outra versão. Bexiga viria de ‘bexiga de boi’, órgão bovino que o dono da chácara venderia e que era, na época, um negócio bastante lucrativo (…) e bem explorado em São Paulo”, descreveu a pesquisadora na publicação.
Foi em 1910 que o distrito passou a ser denominado Bela Vista, abrigando os bairros do Morro dos Ingleses e o Bixiga – a grafia, com “i” na primeira sílaba, é uma convenção que respeita a pronúncia adotada por seus moradores provindos de distintos estados e nacionalidades. A partir da segunda metade do século passado se desenharam, também, os territórios limítrofes atuais – República, Liberdade, Consolação, Vila Mariana e Jardim Paulista. “A evolução da Bela Vista, ou Bixiga, (…) apresenta-nos um quadro muito mais complexo do que aquele das duas primeiras décadas, complexidade esta motivada pela multiplicação de usos, pela manifestação de uma vida noturna bastante original e pelo crescimento acentuado das habitações subnormais e cortiços”, relata Nádia Marzola em seu livro.
No final do século 19, o imperador Dom Pedro II (1825–1891) autorizou o loteamento da região a preços irrisórios, o que incentivou a chegada e a permanência dos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis no local. Antes, no entanto, o território abrigou o Quilombo Saracura – onde refugiavam-se os escravizados que escapavam das feiras realizadas no Vale do Anhangabaú. Foi na região, ainda, que se instalaram, nas últimas cinco décadas, complexos hospitalares, estabelecimentos educacionais públicos e privados e a lendária sede da Escola de Samba Vai-Vai. Há dois anos, porém, a agremiação 15 vezes campeã do carnaval paulistano mudou de ares, deixando a esquina da Rua São Vicente com a Rua Doutor Lourenço Granato para dar lugar às obras da linha 6-Laranja do metrô.
Pelo alto valor histórico, o distrito reúne mais de 900 bens tombados pela prefeitura – a região é, portanto, um espaço significativo para a construção da cidade de São Paulo tal qual a conhecemos hoje, aponta o historiador, pesquisador e professor Petrônio Domingues, autor de Protagonismo Negro em São Paulo: história e historiografia (Edições Sesc São Paulo, 2019). “O bairro do Bixiga tem grande simbolismo na construção do imaginário da paulistanidade. Na maior parte das narrativas, o lugar é associado ao protagonismo dos italianos, mas diversas pesquisas apontam como o bairro, desde a chegada dos imigrantes italianos, já contava com a presença de pessoas negras, algumas das quais, descendentes de escravizados”, explica Domingues.
A região passou por uma nova onda de migração em meados do século 20. “O lugar também passou a ser ocupado por nordestinos que migraram para São Paulo em busca de melhores condições de vida”, detalha Domingues. “No terceiro milênio, é possível afirmar que o Bixiga é um bairro multicultural, que continua acolhendo novos imigrantes, e se consolidou na vida dos antigos migrantes. Todas essas pessoas que convivem no bairro com suas histórias, identidades, costumes e repertórios multifacetados tornaram o lugar um mosaico de experiências étnicas e culturais”, complementa o pesquisador.
Para Domingues, regiões como a Bela Vista, mesmo com a forte herança negra, ainda são associadas, com maior frequência, à imigração italiana. Isso porque, quando pensamos na história destes territórios, o racismo foi um elemento estrutural na formação do imaginário da cidade, utilizado para minimizar, quando não apagar, a presença e o protagonismo de pessoas negras na história da capital paulista. “As narrativas históricas, a maior parte delas eurocentradas, geralmente celebravam a ‘saga’ dos imigrantes – pessoas associadas ao progresso, desenvolvimento e modernidade – e, por outro lado, não reconheciam a importância histórica dos negros – pessoas associadas ao atraso, ideia que precisa ser superada. Tratou-se, portanto, e para usar uma expressão da (escritora) Chimamanda Ngozi Adichie, de uma história única sobre a identidade do bairro: narrativa que invisibilizou a herança negra”, analisa o historiador.
Os espaços culturais desse distrito contribuem para trazer mais sentido de pertencimento a quem vive no território, na opinião de Luiz Tim Ernani. “Em nossas ações sociais e culturais, atividades recreativas e esportivas, de formação ou boemia, nos eventos gratuitos, todos esses espaços oferecem a possibilidade das pessoas se encaixarem no território que cabe a elas, com seus grupos de família e amigos, suas comunidades, suas idiossincrasias”, acredita o produtor cultural. “Todos esses contrastes cabem no Bixiga. Há o conforto de poder ser livre dentro do que cabe a cada um, e esses espaços culturais são os representantes disso: eu pertenço ao bairro porque este bairro me pertence também”. E a cultura popular tem contribuído de forma decisiva na preservação dessa memória afro e nordestina local. “Durante muito tempo, o que foi considerado ‘atrativo’ é a idealização eurocêntrica do mundo. Mas, outra vez, essa pluralidade se impõe, e aos poucos o Bixiga passa a ser conhecido como um bairro afro-ítalo-nordestino, já que o Norte e o Nordeste brasileiros formam uma nação dentro do Bixiga. E essa nova/velha história do bairro está sendo contada exatamente dentro desses espaços culturais”, analisa Ernani. Ou seja, “não é que os espaços culturais ‘ajudam’: eles são os catalisadores, organizadores, arranjadores, criadores e divulgadores desse novo rumo’, complementa. “Moro na Rua Rocha, e me mudei para o Bixiga em 2010. Essa conexão se deu quando notei que era muito parecido com as periferias onde havia morado e também havia o forte laço de comunidade”, arremata o produtor, um apaixonado pela região. Entre asfaltos e construções, os versos de Geraldo Filme tantas vezes entoados pela Vai-Vai resumem esse lugar de encontros, marcado pela diversidade, de cultura pulsante e viva: “Quem nunca viu o samba amanhecer / Vai no Bixiga pra ver / Vai no Bixiga pra ver.
Sesc 14 Bis abre as portas e proporciona novos encontros no reduto histórico do ecletismo cultural paulistano
Uma unidade situada na extensão da via pública e que se desenha a partir da vocação para o encontro e a convivência. É com essa proposta que o Sesc 14 Bis abre suas portas, a partir de 6 de outubro, na Rua Dr. Plínio Barreto 285, no coração da Bela Vista. Nesta primeira fase de funcionamento, a nova unidade do Sesc São Paulo ocupará três andares do edifício. Seu pavimento térreo – com uma área total de 1.995 metros quadrados e pé-direito de 4,90 metros –, é o principal articulador entre o edifício e a rua. Nele haverá um espaço expositivo, biblioteca e área de leitura, espaço de brincar, Central de Atendimento, Loja Sesc e cafeteria.
Na entrada da unidade, uma ambientação dá vida à Praça Sesc 14 Bis. Neste espaço, o público poderá vivenciar intervenções artísticas, oficinas de tecnologia e artes, ações de educação em saúde, sustentabilidade e meio-ambiente. Outro foco da programação será a promoção de aulas abertas, oferecidas pelos programas de Ginástica Multifuncional, Práticas Corporais e Programa Sesc de Esportes. Um dos objetivos é que estas ações sejam articuladas, também, em espaços do entorno do Sesc 14 Bis – a exemplo do Clube da Corrida e de atividades pontuais dos programas socioeducativos para crianças e jovens. O Teatro Raul Cortez, por sua vez, abrigará, principalmente, ações de música e artes cênicas.
“Com o início das atividades do Sesc 14 Bis, a instituição reafirma seu compromisso na promoção do bem-estar de toda a população. A nova unidade tem como principal vocação ser um lugar de encontros, num sentido amplo de ser essa grande praça pública, local por excelência para o exercício pleno da cidadania”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
Dentre os destaques da programação do Sesc 14 Bis, está a exposição Constelação Celestina, com curadoria de Claudinei Roberto. A mostra reúne fotografias do artista Wagner Celestino, que atua desde 1977 e se notabilizou pela qualidade de suas reportagens fotográficas com rara sensibilidade ao retratar a cena cultural afro-brasileira em São Paulo. [Leia mais na seção Gráfica].
14 BIS
Início das atividades: 6 de outubro
Rua Dr. Plínio Barreto, 285 – Bela Vista, São Paulo. Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 19h.
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