Leia a edição de novembro/22 da Revista E na íntegra
Por Luciana Oncken Fotos Adriana Vichi
A relação entre a natureza e as vantagens que ela proporciona à saúde não é uma excentricidade ou algo puramente empírico. Há evidências científicas que corroboram esses benefícios. O estudo pioneiro na área é de 1984, de autoria de Roger Ulrich, que acompanhou um grupo de pacientes entre 1972 e 1981. O pesquisador estadunidense apontou que pacientes internados em quartos com vista para a natureza se recuperaram mais rápido do que aqueles instalados em quartos voltados para um muro de tijolos. De lá para cá, novas pesquisas vêm sendo realizadas em todo o mundo.
Em São Paulo, no Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, a pesquisadora Eliseth Leão vem desenvolvendo investigações sobre o tema. Ela está à frente do e-Natureza – Estudos Interdisciplinares sobre Conexão com a Natureza, Sáude e Bem-Estar. Uma de suas pesquisas estuda como imagens da natureza impactam a saúde de pessoas com câncer submetidas à quimioterapia. Vários pacientes relatam diminuição da fadiga, da ansiedade, de dores, entre outros sintomas, segundo a pesquisadora. Outros estudos têm focado nos benefícios do contato direto da natureza na promoção da saúde.
Lis, como é conhecida, também é fotógrafa da natureza, formada em letras e enfermagem, especialista em saúde pública e em educação à distância, mestre em saúde do adulto e doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado pela Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo, França. Neste mês, ministra uma das aulas do curso de Gestão de Áreas Naturais Protegidas – Ciclo 3 – Saúde e Natureza, como parte da programação do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Lis conversou com a Revista E sobre a intrínseca relação entre o ser humano e a natureza.
O que deu origem a seu interesse, como pesquisadora, para investigar a interferência da natureza sobre a saúde humana?
Considero-me muito ligada à natureza desde a infância. Acho que tudo começa nessa fase da vida. Tenho plena consciência de que o fato de ter essa proximidade e de ter resgatado isso ao longo da minha vida, de diversas maneiras, tem a ver com uma infância feliz e com possibilidade de exposição à natureza. Nasci em São Paulo e fui criada em um ambiente urbano. Então, qual era a exposição à natureza? Primeiro, naquela época, a gente ainda podia brincar na rua, e a minha mãe e meu pai sempre me levaram muito a parques, em particular ao Parque [Estadual] da Água Branca, em São Paulo. Havia essa possibilidade de frequentar um lugar cheio de árvores e animais. A gente também ia muito à praia. Eu ficava imersa nesses ambientes. Depois, um pouco mais adulta, me interessei por fotografia de natureza e vida selvagem. Mas, eu já fotografava meio sem ter muita consciência do que eu fazia. De 2012 para cá, também trouxe isso, tanto para minha vida pessoal quanto para minha linha de pesquisa no hospital.
De que forma o contato com a natureza afeta a nossa saúde? Que resultados já foram observados?
Esses mecanismos vêm sendo estudados, algumas teorias já estão postuladas e vão ser submetidas à prova, mas por enquanto, são teorias. Nesse âmbito, a teoria de Roger Ulrich, que ele chama de Teoria Psicofisiológica do Estresse, diz que se você estiver em contato com a natureza, você tem uma recuperação mais rápida. Do ponto de vista psíquico, você tem um resultado físico também nesse sentido. Temos uma outra teoria, que é de Kaplan e Kaplan [Rachel e Stephan], conhecida como Teoria da Restauração da Atenção, segundo a qual você tem alguns componentes da natureza com os quais você vai se relacionar e se sentir melhor. Quando você vai para um espaço onde há natureza, principalmente quando você vive num centro urbano, você se afasta dos problemas que estão relacionados a esse ambiente e isso já minimiza o estresse. Um outro componente dessa teoria é a fascinação. Exemplo: você se senta num banco de algum parque e vê um pássaro colorido passar por você. Impossível não se fascinar. Então, nesses lugares, você tem mais possibilidades de desencadear esse mecanismo, que é cerebral e que ativa sistemas de recompensa. Existiria também, segundo essa teoria, uma predisposição da sua interação com esse meio ambiente. Quando estamos fazendo uma caminhada, observando a natureza ao redor, muitas coisas vão chamando atenção, mas de uma forma não dirigida, ou seja, você não está intencionalmente olhando para algo em especial. Na realidade, o que você gera com essa atenção não dirigida é uma redução da fadiga mental. Ao contrário de quando estamos no computador, por exemplo, em que nossa atenção é quase totalmente dirigida. Temos também a Teoria da Biophilia [de Edward O. Wilson], segundo a qual temos uma atração e um interesse instintivo pela conexão com o mundo natural, pelo fato de praticamente toda nossa história evolutiva como espécie ter se desenrolado, como qualquer outro animal, em meio à natureza.
E como a contemplação de fotografias da natureza e vida selvagem também exerce uma influência benéfica sobre a saúde?
Tem gente que nem sabe ainda como se conectar com a natureza, essa é a verdade. E a nossa superexposição a telas também nos afasta do mundo natural. Portanto, a redução dessa exposição ao mundo natural é um fator de preocupação. Hoje as crianças precisam de uma tomada, precisam de uma conexão wi-fi para poder se divertir. A gente ainda não sabe o resultado disso lá na frente. Às vezes, as pessoas me perguntam o que eu acho da realidade imersiva. Para mim, tudo na vida tem seu lugar e hora. Agora, se você fala para mim que o paciente vai ficar internado seis semanas dentro de um quarto isolado para um transplante de medula, se eu puder oferecer a ele uma realidade imersiva, acho ótimo. Estou tirando esse paciente daquelas quatro paredes. Nós temos que pensar em quais situações imagens da natureza podem ser benéficas. Caso ofereça-se isso como uma constante na vida das pessoas, para que ela vai sair de casa e ir até um espaço verde? Ela acha que pode acessar a natureza sentada no sofá de casa, onde não há frio ou calor, nem bichos. Então, as imagens são um recurso a ser usado em uma situação na qual a natureza não está presente, em situações em que esse contato não é possível. Dentro do e-Natureza estamos indo a campo para verificar os impactos de áreas verdes em unidades naturais – sejam elas urbanas ou periurbanas – e em unidades de conservação. Isso porque a literatura conta que devemos ter diferentes experiências, com diferentes níveis de biodiversidade presentes, e nós não temos estudos no país com biomas brasileiros. Essa é uma preocupação do nosso grupo, de gerar esse conhecimento. Então, estudamos intervenções que possam aumentar a conexão com a natureza, avaliamos se o fato de ter essa conexão em maior grau reflete melhores resultados. Como o “banho de floresta”, algo que está muito na moda, que é o simples fato de estar exposto a áreas verdes. Outra questão é que, apesar desse benefício, nós ainda temos uma relação muito utilitária com a natureza. Ou seja, isso não tem sido suficiente para despertar comportamentos pró-ambientais.
Atualmente, quais as principais linhas de pesquisa do e-Natureza?
Nós nos baseamos em estudos interdisciplinares e reunimos profissionais de várias áreas, como gestores de áreas verdes, biólogos, médicos e enfermeiros. Reunimos essas pessoas para estudar a conexão entre natureza, saúde e bem-estar. Fizemos um ensaio clínico com pacientes em quimioterapia, que iremos publicar. Temos alguns estudos em andamento, como um levantamento com estudantes de enfermagem e medicina em São Paulo e na Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) de Botucatu, para ver qual o nível de engajamento dessa juventude, uma vez que são eles que irão, lá na frente, ter a possibilidade de oferecer a seus pacientes essa “prescrição de verde”. Precisamos preparar os estudantes para isso, à semelhança de países da Europa. Lá, a “prescrição verde”, que indica que as pessoas devem ir para a natureza, já é uma realidade. E temos atuado, também, na vertente da educação. Temos um estudo que vai traçar o perfil imunológico de idosos em contato com a natureza. Sabemos que só existem estudos nessa linha no Japão, e eles são voltados à biodiversidade local. No Brasil, estamos tentando traçar um perfil imunológico um pouco mais robusto para entender se, de fato, isso acontece aqui também. Além de compreender a qual ambiente a gente está se expondo, já que temos biomas diversos.
Como é essa pesquisa voltada para um público adulto e idoso?
Uma das nossas grandes áreas de estudo é o envelhecimento. Dentro dela, trabalho com o envelhecimento saudável. Como pesquisamos a promoção de saúde, tenho procurado abarcar o público 50+, para pegar uma faixa etária anterior. Estamos investigando questões referentes ao estresse, ao perfil imunológico, e se há algum preditor, até porque essas pessoas podem ter tido um nível de conexão diferente com a natureza. Estamos olhando o que vem primeiro: eu me sinto melhor porque me conecto mais com a natureza, ou eu me conecto porque me sinto melhor nesse ambiente?
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde é um estado completo de bem-estar físico, mental e social. Quando falamos de contato com a natureza, e pensamos numa cidade como São Paulo, sabemos o quão difícil é este acesso. Bairros periféricos muitas vezes são totalmente desprovidos de parques. Quais estratégias podem amenizar essa dificuldade de acesso?
É preciso mudar essa realidade. Quando as pessoas querem se conectar com a natureza , elas não vão para uma unidade de conservação. Elas vão até a praça que está mais próxima ou para o parque mais próximo. Precisamos amplificar esse movimento, que começa a ser discutido, de que é preciso ampliar as políticas públicas para garantir equidade de acesso a esses espaços. Temos Paraisópolis, com pouquíssimas áreas verdes e acesso muito restrito, mas você pode criar possibilidades. E nós estamos com um programa muito legal por lá: Os cientistas do amanhã. Temos recebido, por três meses, 15 jovens que estão indo para o ensino médio e moram nessa comunidade. Eles passam semanalmente, segunda e terça-feira, com os cientistas do Einstein e entram em contato com o que a gente faz dentro dessa área de atuação, e assistem a palestras. Também vamos levá-los ao Parque Burle Marx para avistar pássaros com um biólogo.
Ou seja, esse trabalho de inclusão de uma grande parcela da população desprovida do acesso a áreas verdes precisa ser feito por várias frentes.
Precisamos criar esse acesso, criar esse espaço, e é isso que estamos fazendo por meio de um programa de embaixadores, porque queremos que esses jovens levem essa preocupação para a escola e que isso se amplie. Para além das políticas públicas, cada um de nós, dentro da nossa área de atuação, pode criar estratégias. Outro projeto que estamos realizando, com o apoio da Fundação Grupo Boticário de Conservação da Natureza, é a coleta de dados em seis unidades naturais da cidade. Além disso, a própria pesquisa que realizamos é transformadora, mesmo antes de obtermos qualquer resultado, porque estamos visitando parques, recrutando pessoas, mostrando para elas o que está acontecendo com a saúde delas em termos de bem-estar, de vitalidade, de sofrimento psíquico quando em contato com esses espaços. Só de analisar essa situação você já cria um caminho de acesso. E assim vamos mobilizando a sociedade.
Como incentivar mais estudos com essa temática, até para dar base à adoção dessas práticas?
Esse ainda é um cenário incipiente. Primeiro, porque nós estamos desenvolvendo as primeiras pesquisas no Brasil. Outros grupos estão começando a se mobilizar, mas o fato é que não temos esse corpo de conhecimento aqui. Sem esses dados do Brasil, por mais que a gente traga a literatura internacional, o poder público vai olhar e perguntar como isso vai funcionar no nosso país. Sempre vai haver um ceticismo, porque as pessoas precisam ter dados que sustentem a tomada de decisão e, precisamente, quando se fala do poder público, isso implica em investimentos. Temos nos aproximado do poder público de algumas maneiras. Hoje, temos uma relação mais estreita com o Ministério da Saúde, na Coordenação de Práticas Integrativas e Complementares. São 29 práticas adotadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E temos levado essa discussão de que as intervenções baseadas na natureza também devem integrar esse rol, mas, para isso, a gente precisa de mais pesquisas. Temos procurado aproximar quem está na área ambiental de quem está na área da saúde, e estamos tentando costurar isso à medida em que os estudos são encaminhados e chegam a mais pessoas.
A Organização das Nações Unidas (ONU), por ocasião da Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, promoveu um workshop, neste ano, sobre as experiências do Brasil e do Reino Unido em pesquisas que mostram a importância da relação do homem com a natureza do ponto de vista da saúde, e como isso também pode se reverter para um cuidado maior com a natureza. Cuidar da natureza e cuidar da saúde são sinônimos?
Com certeza: cuidar da natureza é cuidar da saúde. Primeiro, porque nós somos natureza, somos animais, mas nos esquecemos disso. Quando a gente fica nessa dicotomia de que “a natureza está lá e eu estou aqui”, isso não vai dar um bom resultado. Mas, se fomentamos uma relação de interdependência, se fomentamos esse sentimento de pertencimento, temos um caminho: sentir-se parte para cuidar. Alguns estudos demonstram, também, que o fato de estar mais conectado com áreas verdes relaciona-se com um comportamento pró-ambiental.
Então, trazer para a prática essa relação com a natureza como um benefício para a saúde, e não somente um benefício para o planeta, pode aproximar mais as pessoas desse cuidado com a natureza?
Se olharmos a Pirâmide de Maslow [conceito da psicologia, criado pelo norte-americano Abraham Maslow, que organiza, de forma hierárquica, as necessidades humanas básicas], para a gente estar nesse nível de discutir como queremos cuidar da natureza, precisamos ter outras questões resolvidas, porque há coisas mais urgentes para se preocupar até chegar nessa discussão mais ampla sobre o clima, por exemplo. As pessoas pensam que isso não tem nada a ver com elas. Ou seja, precisamos focar nesse sentimento de pertencimento. A gente tem que aprofundar essa consciência de que somos todos interdependentes, porque toda vez que a gente se sente separado do outro, qualquer que seja esse outro, seja a natureza, seja o ser humano que também integra a natureza, a gente tem comportamentos que não são bons, como o desrespeito e a violência.
Florence Nightingale, mãe da Teoria Ambientalista de 1859, abordava questões como a importância do ar fresco, da iluminação natural, dos banhos de Sol e do contato com os animais. Hoje, as crianças passam pouco tempo na natureza, em média duas horas por dia. Ainda há tempo de recuperar essa conexão?
Nightingale era uma enfermeira inglesa visionária. Essa mulher falou de tudo e por muitos anos criou estatística dentro dos hospitais. Mas, ela viveu numa época em que os hospitais estavam imersos em áreas naturais. Assim, já havia os jardins terapêuticos. O que a gente faz hoje é usar esse conhecimento e alguns pressupostos da teoria de Nightingale para lembrar que a gente precisa olhar e desenhar melhor os espaços urbanos e os espaços de cuidado. Penso que é imperativo esse retorno à natureza, senão a gente não vai ter planeta. Se a gente for degradando e degradando, uma hora as coisas não vão dar certo para a nossa espécie.
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Neste mês, discutimos a acessibilidade em museus e espaços expositivos. Para além de uma arquitetura acessível, instituições culturais apostam em recursos táteis, auditivos e visuais para ampliar a fruição e acolher públicos cada vez mais diversos. Conheça as políticas de acessibilidade de espaços como a Pinacoteca, Museu do Ipiranga, Museu do Futebol e unidades do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E de novembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que destaca a potência da criação coletiva e processual nas artes cênicas; uma entrevista com Eliseth Leão, que defende que a conexão com a natureza ajuda na manutenção da nossa saúde; um depoimento de Gilberto Gil, que se reiventa aos 80 e compartilha conosco memórias, vivências e inspirações; um passeio por croquis, desenhos de cenografia e fotos de palco que celebram o legado do italiano Gianni Ratto; um perfil de José Saramago (1922-2010), escritor português que faria um século de vida; um encontro com a diretora e dramaturga Joana Craveiro, da companhia portuguesa Teatro do Vestido; um roteiro por 5 espaços no estado de SP adornados por azulejos; um texto inédito da prosadora mineira Cidinha da Silva; e dois artigos que fazem um balanço sobre os 10 anos de criação da Lei de Cotas.
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