O engenhoso percurso artístico de Samuel Kerr, um dos mais renomados arranjadores e regentes de coro da música brasileira
Por Manuela Ferreira
Leia a edição de agosto/23 da Revista E na íntegra
De tão forte, o estampido do carrilhão de sinos da Catedral da Sé, no Centro de São Paulo (SP), é ouvido a dois quilômetros de distância. As badaladas, que têm início ao meio-dia, podem significar um contratempo para a prática musical individual, de orquestra ou coro. E esse foi o principal empecilho encontrado pelo professor, arranjador e regente Samuel Kerr (1935-2023) ao começar, no final dos anos 1970, os ensaios para o espetáculo natalino do coral de funcionários da reitoria da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – sediada, à época, nas imediações da basílica.
O desafio de conduzir o conjunto de vozes, que só podia se reunir no mesmo horário em que soavam os 61 gigantescos instrumentos de bronze, converteu-se em um dos atestados de originalidade que permearam a carreira do artista. “Eu sugeri: que notas vocês estão ouvindo do carrilhão? A soprano achou uma nota, o contralto achou outra, o baixo, outra… ficou tão bonito que eu pus [o resultado] como música do programa, e foi a mais aplaudida!”, recordou-se o maestro, durante bate-papo realizado pelo Centro de Música do Sesc, no Youtube. “Propus ao coro que, já que ouvimos o carrilhão, a gente ouvisse também a praça. Então, criei com eles um espetáculo coral com os sons da Praça da Sé”, completou o regente. O coral da Unesp, um dos mais importantes do país, ganhou novo fôlego a partir daquele Natal. E o episódio se tornou um dos símbolos da filosofia artística de Samuel Kerr: o canto também é escuta.
“A coragem de romper com uma linguagem tradicional, e experimentar novas maneiras de abordar o repertório, foi, sem dúvida, um dos atributos que impulsionaram a carreira de Samuel Kerr. Por ter sido professor de tantos regentes de coros durante sua trajetória no ensino superior, ou em cursos e painéis em que era convidado, Samuel influenciou o cenário coral do país inteiro. Sentimos muito fortemente sua maneira de pensar o canto coral em trabalhos de regentes espalhados pelo Brasil”, escreveu o pesquisador Paulo Frederico de Andrade Teixeira na dissertação Samuel Kerr: um recorte analítico para performance de seus arranjos (2013), para o Programa de Pós-Graduação em música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
O regente se consolidou, ainda, pela condução de diversos corais amadores e pelos arranjos de hinos para corais evangélicos, ao passo em que também inovou como um dos primeiros maestros a criar arranjos de músicas populares brasileiras para corais – a canção Até pensei (1968), do cantor e compositor Chico Buarque, foi uma delas.
Filho de Walwick e Ondina Kerr, Samuel aprendeu a engatinhar em meio ao coro da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, no bairro da Santa Cecília, região central da capital. A família era assídua participante do coral da instituição religiosa – a mãe chegou a ser regente substituta. Em casa, a música era assunto importante: os ensaios do coro da igreja eram precedidos por outros ensaios, pois era inadmissível não saber cantar as músicas sacras. À medida em que crescia, o menino aprendeu a tocar piano e órgão, e o interesse pelo hinário se aprofundou. Chegou a pensar em estudar arquitetura, mas a herança musical familiar falou mais alto. “Como fiquei muito empenhado em trabalhar com a música da Igreja Unida, quando cresci, passei a ser organista. E conheci pessoas muito importantes, como Nilce do Val Galante, que era minha professora e regente do coro, [o pianista, compositor e diretor musical] Paulo Herculano Marques Gouveia (1935-2017) e [o maestro] David Machado (1938-1995)”, rememorou Kerr em depoimento ao site Hinologia Cristã.
O trabalho musical da Igreja Presbiteriana Unida possibilitou que os jovens Samuel, Paulo e David aprimorassem a formação artística erudita e ingressassem, no começo dos anos 1960, no Seminário de Música da Proarte, antiga Escola Livre de Música, fundada pelo musicólogo Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005). “Tivemos uma formação musical de muita qualidade, de muita exigência, o que fez com que Paulo, David e eu pretendêssemos transformar a música na Igreja Presbiteriana, lembrando o trabalho da Reforma [Protestante] do século 16. Nós queríamos muito que a igreja voltasse a cantar os salmos do [teólogo] João Calvino (1509-1564), de músicos como [o compositor renascentista] Louis Bourgeois (1501-1561). Com isso, nós estávamos tentando tocar uma música nova. Antiga, mas nova”, refletiu Kerr.
Samuel Kerr ainda era bacharel em composição e regência pela Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo quando abraçou a docência. Em 1977, assumiu a função de professor de regência coral na Unesp, prerrogativa que conquistou pelo notório saber. Antes, lecionou na Universidade de São Paulo (USP), no então curso de música, de 1974 a 1976. Foi também diretor da Escola Municipal de Música nos anos 1980, década em que passou a ter forte atuação como regente de coros amadores – um dos reflexos da sua paixão pelo ensino coletivo. Tal despertar, no entanto, não foi consciente. “Eu apenas fui entender que o fazer musical é de todo ser humano [quando] eu estava como profissional atuante”, relembrou o maestro durante bate-papo
realizado pelo Centro de Música do Sesc, no Youtube.
A sensibilização musical de Kerr, que reverberou em quase seis décadas de carreira, seja em salas de aula ou direcionada a cantores não profissionais, é sintetizada em máximas que incentivavam qualquer pessoa a cantar. “Você canta porque canta sempre – você está cantando sempre! Você rege, porque rege sempre. Ou seja, você abre uma porta e está regendo. E você precisa lembrar da musicalidade do seu gesto. Quando teu gesto ganha um significado musical, daí você está regendo. Você sempre terá uma música bonita para seu coro, desde que você esteja atento ao universo sonoro que te rodeia. Você sempre estará aprendendo com o seu coro se você o escutar. O coro sabe coisas fundamentais para a tua vida de regente”, esmiuçou o artista.
Ainda na década de 1980, o canto coral saiu das igrejas e entrou também nas empresas e órgãos públicos, outra confirmação da relevância e popularização do movimento coral sistematizado por Kerr. Entre os grupos que o músico conduziu estão, por exemplo, o Coral Paulistano do Theatro Municipal de São Paulo, fundado em 1936 por Mário de Andrade (1893-1945), o Coral dos Estudantes de Medicina da Santa Casa de São Paulo, o Coral do Esporte Clube Pinheiros e o Coral da Associação dos Funcionários da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Fez, ainda, a direção musical dos espetáculos A Aurora da minha vida (1981), do dramaturgo Naum Alves de Souza (1942-2016) e Hans Staden no País da Antropofagia (1971), de Francisco Pereira da Silva (1918-1985).
Quando assumiu a coordenação da Orquestra de Cordas do Sesc São Paulo, em 1984, o regente deu início a um pioneiro trabalho de coro para idosos – público que tinha o hábito de se encontrar, diariamente, na área de convivência do então Sesc Vila Nova (atual Sesc Consolação) para jogar cartas [Leia mais em A musicalidade de cada gesto]. O maestro decidiu implementar um grupo de canto coral à tarde para testar o interesse dos frequentadores. Nos primeiros dias após a abertura das inscrições, apenas duas pessoas apareceram – uma jovem de 16 anos e uma mulher octogenária. Entretanto, com o tempo, o projeto chegou a reunir cerca de 80 integrantes. Tanto em seu tímido início, quanto em seu encerramento, Samuel Kerr estava sorrindo, atento e alegre, a cada começo de ensaio.
Legado de Samuel Kerr está fincado nas raízes do Centro de Música do Sesc São Paulo, que neste mês abre vagas para novos cursos regulares
O projeto de canto coral implantado no Sesc São Paulo, em 1984, pelo maestro Samuel Kerr, foi chamado, a princípio, de Laboratório Coral, e assim seguiu até a concepção do Centro Experimental de Música, em 1989 [um desdobramento da Orquestra de Cordas do Sesc]. Hoje, o Centro de Música do Sesc está presente nas unidades Consolação, Vila Mariana e Guarulhos.
Um dos diferenciais do projeto pioneiro era o forte compromisso com a inclusão e a acessibilidade: no elenco dos primeiros grupos, havia pessoas de diferentes origens, classes sociais, etnias e credos. Samuel Kerr trabalhou no Canto Coral do Sesc até 1987, mas as atividades formativas realizadas até hoje são reflexo daquele começo.
Quem tiver interesse em conhecer o trabalho do Centro de Música do Sesc, e quem sabe aprender, ou aprimorar, conhecimentos relacionados ao universo musical, pode se inscrever em um dos diversos cursos regulares oferecidos ao longo do segundo semestre deste ano. Entre as ações, cursos teóricos e práticos para desenvolvimento em canto, instrumentos e musicalização para diferentes idades, em vagas distribuídas nas categorias iniciação, continuidade, prática de conjunto e livre.
As matrículas para iniciados, ou seja, para pessoas já matriculadas em cursos anteriores do Centro de Música ou que já possuam conhecimento prévio na técnica pretendida, abrem de 1º a 4/8. Para alunos iniciantes, o prazo de inscrição é de 15 a 18/8. As aulas começam entre os dias 22 e 26 deste mês, nos três Centros de Música do Sesc em São Paulo.
Centro de Música do Sesc São Paulo
Consolação, Guarulhos e Vila Mariana
Abertura das inscrições para os cursos regulares do segundo semestre de 2023: a partir de 1º/8.
Consulte as condições e inscreva-se:
sescsp.org.br/centrodemusica
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