Os passos revolucionários da polivalente escritora Patrícia Galvão, a Pagu
Por Manuela Ferreira
Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra
Na história do Brasil, não foram poucas as mulheres que, mesmo enfrentando cenários desafiadores e excludentes, fizeram de suas biografias exemplos de ousadia e coragem. No entanto, uma delas se destacou por ter assumido, desde cedo, a missão de ir sempre além do lugar-comum, em nome da busca incessante por liberdade. O legado de Patrícia Galvão (1910-1962), mais conhecida como Pagu, é a prova de que sua existência era puro destemor. Foi escritora, poetisa, desenhista, ilustradora, diretora teatral, agitadora cultural, crítica literária, jornalista, tradutora, ativista política e militante operária, abarcando tantas facetas quanto eram seus talentos. Uma trajetória tão marcante que ecoa, ainda hoje, em cada mulher que reluz nas artes e na política. Seu pioneirismo na luta pela emancipação feminina no país continua inspirando gerações.
Homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2023, que acontece de 22 a 26 de novembro, Patrícia Galvão esteve ligada ao movimento modernista e reivindicou, de forma emblemática e em toda a sua produção, a causa trabalhista e a condição da mulher no cenário literário brasileiro. É o que aponta a pesquisadora e professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) Suely de Oliveira Lopes. “Com seu primeiro livro, Parque industrial, de 1933, ela inaugurou o romance proletário nacional – uma vez que, dentro da classificação de literatura engajada, a obra teria sido vanguardista ao abordar especificamente a vida de trabalhadores proletários. A obra figura em meio a uma era de diversos eventos políticos relevantes no Brasil e no mundo, a exemplo da Grande Depressão de 1929, nos Estados Unidos, e da Revolta do Forte de Copacabana, de 1922. Interessante citar que grande parte desses acontecimentos contribuíram para o cenário de lutas e revoltas dos personagens”, revela a docente.
BRILHO PRECOCE
Sua estreia literária está atrelada a uma das mais fortes experiências da vida da escritora, conforme explica Suely de Oliveira Lopes. “Em 1932, ela habitava um bairro de trabalhadores no Rio de Janeiro, e atuava como guarda armada em reuniões do Partido Comunista do Brasil (PCB), que a censurou e depois a expulsou por considerar seu movimento de ‘agitação individualista e sensacionalista’. Isso a obrigou a adotar o pseudônimo de Mara Lobo para o lançamento de Parque industrial”, diz a pesquisadora. A filiação partidária, que aconteceu em 1930, teve seu rompimento definitivo dez anos depois.
A verve política e iconoclasta, entretanto, já acompanhava a escritora desde quando era somente a caçula das três filhas de um casal de classe média alta de São João da Boa Vista, município do interior de São Paulo. O pai, advogado e jornalista, e a mãe, dona de casa, encaravam com preocupação o comportamento da mais nova. Pagu fumava, tinha cabelos curtos, pintava os lábios de vermelho intenso, vestia calças e abusava de roupas transparentes. Falava o que vinha à mente, sem freios, ria alto, gostava de festas e bebia álcool. Em suma, era a personificação do atrevimento habitando um lar católico e conservador.
ESSÊNCIA INTELECTUAL
Diante do futuro manso e pacato que a aguardava, rebelou-se. Chegou à capital paulista em 1925, e se instalou no bairro do Brás, de tradição operária, onde conseguiu seu primeiro emprego como redatora e colunista do Brás Jornal. Assinando com o pseudônimo de Patsy, ela procurava se afastar do pensamento burguês de então, escrevendo sobre política e tecendo críticas ao governador Carlos de Campos (1866-1927). Aos 18 anos, ainda estudante da Escola Normal da Praça da República, conheceu o Movimento Antropofágico. A partir do intenso contato com o poeta e romancista Oswald de Andrade (1890-1954) e com a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973),
casal-símbolo à frente do grupo, foi considerada a musa dos modernistas, embora não tenha participado da Semana de Arte Moderna de 1922 – Patrícia Galvão tinha apenas doze anos quando o evento se realizou.
O apelido Pagu foi dado pelo escritor Raul Bopp (1898-1984), que dedicou um poema à autora, em 1929. “Neste período, já partilhando das posições de vanguarda dos modernistas, e junto a Oswald de Andrade, ela passa a escrever uma coluna radical, com severas críticas ao feminismo burguês, intitulada A Mulher do Povo, para a revista/jornal O Homem do Povo”, descreve Suely Oliveira Lopes. O contexto histórico e social daqueles anos, portanto, impulsionou a produção da escritora.
“Durante essa fase, aconteceu também o desenvolvimento das grandes indústrias no eixo Rio – São Paulo, e o Partido Comunista tinha como proposta ser a voz daquela classe trabalhadora que se espalhava cada vez mais pelas grandes cidades. É nesse cenário de instabilidade econômica, com trabalhadores e trabalhadoras começando a se filiar a sindicatos, que ela mergulhou, revelando as nuances entre o cotidiano de mulheres em seu ambiente de trabalho e as tensões e temas rotineiramente levantados pelas questões de classe”, pontua a professora.
CHAMA DO INCONFORMISMO
Ao liderar uma greve de estivadores do Porto de Santos, no litoral paulista, foi presa pela primeira vez – foram 23 prisões ao longo de 52 anos de vida. No âmbito pessoal, a escritora experimentara um escândalo ao se casar, em 1930, com Oswald de Andrade, em cerimônia no Cemitério da Consolação, na região central de São Paulo. Da união nasceu o cineasta e escritor Rudá de Andrade (1930-2009). A paixão entre Patrícia e o autor de O Rei da Vela (1937) teve início enquanto ele era casado com Tarsila do Amaral. Após o fim do matrimônio com Oswald, em 1934, Pagu saiu de casa para morar sozinha, compartilhando a criação do pequeno Rudá – atitude vista como afronta numa época em que o divórcio não era socialmente aceito.
“Não tinha nenhuma confiança nos meus dotes literários, mas como minha intenção não era nenhuma glória nesse sentido, comecei a trabalhar”, relatou em Paixão Pagu: Autobiografia precoce, publicada em 1940. A obra, lançada quando a autora tinha 30 anos, foi um dos marcos da liberdade reconquistada depois de cinco anos presa por razões políticas. No livro, denuncia as torturas que sofreu por agentes da ditadura do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), revisita amores e impressões sobre viagens ao redor do mundo, quando trabalhava como correspondente internacional dos jornais Correio da Manhã e Diário da Noite.
No campo ideológico, teve sua militância reconhecida pelo militar e político Luís Carlos Prestes (1898-1990), líder do Levante Comunista de 1935. No mesmo ano em que deixou sua mais longa detenção, casou-se com o escritor Geraldo Ferraz (1905-1979), seu companheiro até a morte, e com quem teve seu segundo filho, o jornalista Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013).
MÚLTIPLAS PRESENÇAS
Mais um gesto de autonomia viria logo depois: Pagu passou a estudar na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo (EAD-USP). No período, traduzia obras clássicas da dramaturgia e montava peças amadoras. Ao se mudar para Santos, com o marido e os filhos, em 1954, trabalhou no jornal A Tribuna, ao mesmo tempo em que protagonizava o movimento pela construção do Teatro Municipal da cidade.
Anos mais tarde, acometida pelo câncer pulmonar que a vitimou, atravessou um período de depressão, em que optou pela reclusão. “O fato é que, salvo na esmaecida imagem de estrela menor do anedotário do nosso modernismo, Patrícia Galvão mal existia nos anos 1950, quando Oswald ainda era ‘tabu’ no cânone das nossas universidades. E assim perdurava trinta anos depois, à luz dos rígidos critérios acadêmicos”, escreveu o poeta Augusto de Campos em Pagu – Vida e obra (Companhia das Letras, 2014), livro em que reúne um conjunto de manuscritos e poemas-desenhos da artista, editado pela primeira vez em 1982.
A publicação contribuiu para que novos olhares fossem lançados sobre ela, reacendendo o interesse de intelectuais e artistas por sua carreira e vivências, a exemplo da cantora e compositora Rita Lee (1947-2023). Nos versos de Pagu, de 1999, cantou: “Sou rainha do meu tanque/ Sou Pagu indignada no palanque”. Outras homenagens ganharam os palcos, em montagens teatrais, como o monólogo Pagu – até onde chega a sonda, escrito e interpretado pela atriz Martha Nowill. Sob direção de Elias Andreato, o espetáculo estreou no Sesc Pompeia, em novembro de 2022. Já o romance Pagu no metrô (Nós, 2019), de Adriana Armony, revive a fase em que a musa antropofágica viveu em Paris, nos anos 1930.
“Na redescoberta de Patrícia Galvão fui ajudado por um acaso literário – um daqueles acidentes que costumo identificar com a ideia de sincronicidade de Jung. A história é conhecida e faz parte deste livro. Foi o poema “Natureza morta”, que Patrícia publicou em 1948 sob o pseudônimo de Solange Sohl, sem que eu soubesse quem realmente era a sua autora – a ponta do iceberg, que me levou a recompor a sua história e a resgatar, por trás da distante aura carismática que cercava o nome Pagu, a garota fatal e doidivana que fez ‘vacilar o lar’ de Tarsila. A personalidade artística, literária e humana que hoje se reconhece nela. Quem escreveu aquele poema – pensava eu – era alguém especial”, detalhou Augusto de Campos em Pagu – Vida e obra.
Também passei por essa prova.
Trecho do livro Pagu – Vida e obra, de Augusto de Campos (Companhia das Letras, 2014). Imagem: Acervo Lúcia Teixeira / Centro Pagu Unisanta
Também tentaram me esganar em muito
boas condições. Agora, saio de um túnel.
Tenho várias cicatrizes, mas ESTOU VIVA
PARAÍSO DAS LETRAS
Neste mês, durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Casa Edições Sesc São Paulo realiza encontros literários e abriga livraria com títulos do acervo e lançamentos
A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) chega à sua 21ª edição homenageando o legado insurgente e versátil de Patrícia Galvão, a Pagu. As charmosas ruas do centro histórico do município fluminense serão palco de uma série de atividades que acontecem entre os dias 22 e 26 de novembro. A Casa Edições Sesc São Paulo abre as portas para o público da Flip, mais uma vez, trazendo lançamentos, bate-papos e outras ações inspiradas nas publicações de seu catálogo.
Música, teatro, literatura negra, educação, entre outros assuntos, dão a tônica da programação do espaço. Durante a Festa, as Edições Sesc São Paulo também disponibilizam para venda mais de 200 títulos com descontos de 40%. Entre as obras recém-lançadas, estão a nova edição de A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2020), de Mário Augusto Medeiros da Silva, Parlapatões: no ato, organizado por Cuca Nakasone, e A incrível história de Leny Eversong ou a cantora que o Brasil esqueceu, de Rodrigo Faour.
Casa Edições Sesc São Paulo na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)
De 22 a 26 de novembro. GRÁTIS. Programação completa em sescsp.org.br
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