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Quem foi Lúcio Cardoso?

CECÍLIA PRADA

Stendhal dizia que a política, quando entrava na literatura, era como "um tiro de pistola no meio de um concerto". Para ilustrar esse ponto de vista, seria suficiente aprofundar o momento literário dos anos 30 a 50 e ver o que aconteceu, na literatura brasileira, com os dois grupos fundamentais de romancistas da época, herdeiros da ruptura modernista: enquanto uns vestiam a camisa progressista, social, ou "engajada" - que resultou principalmente no dito "romance do nordeste" -, outro grupo, não menos vivo e importante, foi deglutido, classificado como "intimista", ou mais simplistamente "de direita", suprimido grosseiramente a ponto de ser hoje difícil até mesmo encontrar material crítico e biobibliográfico sobre esses autores, entre os quais avultam dois dos nossos maiores romancistas: Cornélio Pena e Lúcio Cardoso.

A atividade literária constante, durante mais de 30 anos, que Lúcio Cardoso desenvolveu, deixando um saldo de seis romances e outras tantas novelas, fez dele figura das mais importantes de sua época e merecedor, em 1966, do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Além disso, nos últimos dez anos de sua vida o artista, semiparalisado por um derrame, usaria a mão esquerda para pintar quadros em que procurava transmitir a atmosfera do seu cotidiano e dos seus romances, e nos quais o crítico Clarival do Prado Valadares via "uma certa matéria que, como o pão e o vinho, é capaz de fazer o corpo e a alma de um mistério".

Incursões também foram feitas por Lúcio no campo do cinema e do teatro. Como roteirista e diretor fez em 1949 A mulher de longe, testemunho inacabado de um heróico pioneirismo. Mais tarde escreveria para Paulo César Saraceni o roteiro de Porto das caixas, e veria sua obra-prima, o romance Crônica da casa assassinada, transposta para o cinema.

Suas histórias continuam a interessar produtores e diretores. Prepara-se atualmente uma adaptação de seu último romance, O viajante. Igualmente no teatro o talento do escritor seria notado. Sua peça O escravo, encenada em 1943 pelo grupo Os Comediantes, seria considerada por Sábato Magaldi "a primeira tentativa de renovação do palco brasileiro".

Apesar disso, e do reconhecimento que teve por parte de escritores, artistas e críticos, Lúcio foi ficando completamente esquecido pelas novas gerações. O que fez Antônio Olinto denunciar em 1970, quando os Diários de Lúcio Cardoso foram postumamente publicados, "o muro de silêncio que obriga a obra de Lúcio a um relativo anonimato imerecedor" e a indagar, abertamente: "Que levará a crítica a esse emudecimento?"

Com a renovação da atitude crítica que se processa no momento atual, em que as correntes materialistas e autoritárias que caracterizaram o século diluem-se e dão lugar a uma visão mais completa do homem no universo, é importante retirar do baú da história essas figuras de "esquecidos" e "patrulhados" - a começar pela de Lúcio, cujos 30 anos da morte são lembrados neste ano.

Cosmogonia do pecado

Nascido em Curvelo (MG) a 14 de agosto de 1913, Joaquim Lúcio Cardoso Filho desde cedo demonstrou uma personalidade sensível, de elevado cunho artístico, e desdenhou o ensino oficial para ir adquirindo no mergulho cotidiano e constante de obras literárias o instrumento verbal de expressividade singular que é o seu estilo.

A partir de 1929, estabelecido definitivamente no Rio de Janeiro, o adolescente Lúcio entraria de imediato no mundo literário, teatral e jornalístico. Seu romance de estréia, Maleita, escrito aos 16 anos e publicado em 1934 pela editora Schmidt, causou impacto crítico. Até mesmo Agripino Grieco, temido por todos como o maior bicho-papão da crítica literária, nele reconheceu um "talento admirável, como raras vezes se tem verificado em nossas letras, tratando-se de autor tão jovem".

Maleita, hoje acessível somente em alfarrábios de bibliotecas, é obra que surpreende pela estrutura vigorosa, pelo frescor da linguagem, pela temática - a vida diferente levada pelo pai do escritor, Joaquim Cardoso, andarilho fundador de cidades, espírito aventureiro. Não é difícil prever que, se Lúcio continuasse a trilhar os caminhos do realismo, e principalmente se conseguisse se enquadrar nos rumos da literatura social, teria tido sucesso igual ao de um José Lins do Rego, ou de um Graciliano Ramos. Aliás, o próprio José Lins, comentando em 1954 o romance Enfeitiçado, diria: "Há na sua visão a penetração dos videntes, aquela maneira quase infernal de um Julien Green, em dissecação que não é dos sentidos como em Proust, mas que se exercita sobre as camadas subterrâneas da alma".

Essa persistente fidelidade à alma parece ter sido, justamente, o que prejudicou o sucesso da obra geral de Lúcio. Com Salgueiro, de 1935, e A luz no subsolo, do ano seguinte, a opção definitiva seria feita pelos romances de atmosfera, psicológicos, introspectivos. Dali em diante romances e novelas se seguiriam, com freqüência quase bienal, até a publicação, em 1959, de sua obra maior, Crônica da casa assassinada, condensação de toda a vivência de oligarquia mineira que Lúcio trazia em si, exagero de romantismo, de poesia, de estilo. Até mesmo um crítico sóbrio e rigoroso como é Wilson Martins diria que Crônica da casa assassinada "marca uma data e indica um caminho".

Fantasma de si próprio

Mas a grande obra criada pelo romancista trazia-lhe uma cilada emocional - Lúcio sofreria sempre a limitação de uma identificação, dolorosa, visceral com seus personagens, fato que o impediria de ter a visão distanciada, indispensável aos grandes criadores. Confessava-se "misturado ao enredo e ao sofrimento dos outros... porque vivo de um modo pleno e absoluto com o meu trabalho", posto que, reforçava, "para se tratar com fantasmas só há uma receita possível: tornar-se fantasma também". Foi essa limitação, a incapacidade de destacar-se do meio, que no entanto descrevia como abafado, incapaz de compreendê-lo, que prejudicou o romancista, impedindo-o de criar uma obra que - como a de William Faulkner, por exemplo - pudesse aliar o estilo altamente poético à visão épica. Mas não há como negar que Lúcio está aparentado com outra família literária - a de Franz Kafka. Como este, solitário, atormentado e oprimido pelo ambiente, constantemente duvidando de si, sincero e autêntico até o desconforto, mas capaz de vivenciar até os extremos da sensibilidade as forças castradoras de uma sociedade apodrecida.

Reconhecia a estreiteza dos valores tradicionais tanto da família como da religião católica do seu tempo (fechada, conservadora), sofria terrivelmente com sua condição de homossexual - num tempo em que isso era visto como vergonha e anomalia -, denunciava a mesmice estagnada da sociedade, mas sem nunca conseguir assumir completamente o rebelde que havia em si. Registrava em seu diário, em 1951: "Este Diário é uma súmula de remorso e de consciência culpada". E se recriminava de não poder viver "sensatamente".

Perseguia-o sempre a consciência do "mal", obcecava-o a idéia da salvação, a necessidade de encontrar o seu Deus, de redimir-se: "O mal, para mim, não foi uma entidade literária, ou uma sombra apenas entrevista no horizonte humano. Soube com pungente intensidade o que ele significa em nossas vidas, e muitas vezes toquei seu corpo com meus dedos queimados... já que a dura contingência humana me fez tão propício ao seu fascínio".

Assim, os Diários, publicados pela primeira vez em 1961, e em versão póstuma e completa em 1970, constituem documento literário, social, psicológico de valor ímpar - mesmo que o escritor nos tivesse deixado somente essa obra como legado, já mereceria o reconhecimento das gerações futuras. Na forma "diário" todo autor introspectivo encontrou sempre o diálogo de suas profundezas - uma necessidade que os proliferados escritores da indústria cultural de hoje não conseguem nem mesmo compreender. Mas que Lúcio assumia plenamente: "Temos de viver até o âmago a crassa época de egoísmo e barbárie que nos foi destinada... mas acho que o gênero diário valerá para o futuro não mais como um índice de confissões pessoais, mas pela descrição do itinerário pelo qual conseguiram subsistir alguns espíritos".

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