Postado em 16/12/2003
Rua do Triunfo / Foto: Laura Lopes
Ruas do pecado e do cinema trocam glamour por abandono
LAURA LOPES e CARLOS JULIANO BARROS
A Boca do Lixo ainda existe." Quem diz isso é o famoso repórter policial Percival de Souza. Na década de 60, quando o jornalista começou sua carreira, o submundo de São Paulo tinha endereço. Na área central da cidade, o famoso Quadrilátero do Pecado – delimitado pelas avenidas Duque de Caxias e São João e ruas dos Timbiras e dos Protestantes – contava com a maior concentração por metro quadrado de prostitutas e bandidos de todos os tipos.
A região, que nos anos 90 foi rebatizada de "cracolândia", já não é mais a referência das atividades ilícitas na capital paulista. A prostituição e o crime organizado diluíram-se por toda a cidade. Se no passado a Boca possuía até um certo glamour, associado a histórias fascinantes de uma marginália romântica, hoje aquele estranho encantamento se perdeu. Atualmente, os pomposos nomes das ruas do Triunfo, Aurora e Vitória não refletem o abandono em que elas se encontram. O novo plano diretor do município define a região como Zona Especial de Interesse Social 3. Quer dizer que possui infra-estrutura, mas precisa de investimentos para incentivar a moradia popular e oxigenar seu tradicional comércio.
Porém, no que se converteu a famigerada Boca do Lixo? Hoje, prédios antigos e deteriorados, cortiços e casas de prostituição – tanto de mulheres como, em boa medida, de travestis – convivem com intensa atividade comercial, cujo maior expoente é a Rua Santa Ifigênia (ver texto abaixo).
É difícil acreditar que, na década de 70, uma pequena quadra da Rua do Triunfo era um dos maiores pólos de produção de cinema do país. Por lá, passaram nomes agora consagrados e que, certamente, não põem os pés na Boca há tempos. Mas, misturados a homens embriagados, travestis e prostitutas, ainda podem ser encontrados personagens que ajudaram a escrever um capítulo mágico da história cinematográfica nacional.
Atualmente, mais fácil do que ver um garoto fumando crack naquela área é esbarrar, num dos botecos da Rua do Triunfo, em um ilustre representante do cinema daqueles tempos. Não raro, Ozualdo Candeias, Aníbal Massaini, Cláudio Portioli e José Lopes Índio, entre outros, estão por lá zanzando atrás de algum contemporâneo para conversar.
1, 2, 3... gravando
Por ficar próxima às estações da Luz e Júlio Prestes, a Boca do Lixo se tornou local de passagem de pessoas e produtos. Por conta da localização estratégica, muitas distribuidoras de filmes estrangeiros se fixaram na região. Já nos anos 1920 e 30, companhias renomadas como a Paramount, a Fox e a Metro se instalaram por lá. Décadas mais tarde, a Rua do Triunfo se transformou em reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados, serviços de manutenção técnica, enfim, um mar de empresas do ramo cinematográfico. Era cena comum ver homens puxando carroças carregadas de latas de filmes pelas vias públicas.
No final dos anos 60, o ponto de encontro de estudantes de cinema, atores e diretores era o Restaurante Costa do Sol, na Rua 7 de Abril. Entretanto, para ficar mais perto de exibidores e distribuidoras, eles acabaram se mudando para a Rua do Triunfo. O restaurante em voga passou a ser o Soberano – que ainda existe, mas com o nome Triumpho’s. Isso quem conta é José Mojica Marins, entre um gole e outro de licor de menta. "É para molhar a garganta", justifica o criador do Zé do Caixão, famoso personagem do terror nacional que completou 40 anos em outubro passado. Mojica é categórico ao afirmar que o primeiro produtor a se instalar na rua foi Osvaldo Massaini, com a Cinedistri Ltda., em 1949. Essa empresa foi responsável por boa parte da produção cinematográfica da Boca, e a única brasileira a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com o longa O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte.
Depois da transferência da trupe para a Triunfo, a rua se tornou um local "bonito demais, com grandes atores desfilando por ali", lembra Mojica. Foi assim que a Boca se tornou uma escola, e quem a freqüentava aprendeu, sobretudo, a fazer cinema barato.
Dos anos 60 até o final dos 80, a produção de cinema da Boca foi muito fértil. "São Paulo chegou a ultrapassar o Rio de Janeiro, com mais de cem filmes por ano, cerca de 80% deles feitos na Boca", lembra o baiano José Lopes Índio. No início, eram as chanchadas; no auge, as pornochanchadas, faroestes e cinema marginal; na decadência, filmes pornoeróticos. Com seu jeito simples e vestes modestas, Índio é freqüentador assíduo da Boca do Lixo e adora cerveja e um bom papo. No total, ele participou de cerca de 70 produções e fez de figuração até efeitos especiais. Índio conta que, no auge do cinema da Boca, financiamento não chegava a ser problema: "Tinha gente de todo tipo querendo colocar dinheiro aqui. Afinal, naquele tempo o cinema dava retorno, embora também tenham surgido muitas produtoras pequenas, que só faziam um filme", recorda.
Apesar da concentração de artistas, no entanto, a região continuava perigosa. Reduto da malandragem paulistana, as ruas Vitória, Aurora, dos Andradas, dos Gusmões e dos Timbiras carregavam o ar da ilegalidade. Hoje com mais de 80 anos, o diretor Ozualdo Candeias lembra que havia um pacto não oficial entre a bandidagem e o pessoal do cinema, algo automático, espontâneo: "Ninguém mexia com a gente". Caminhoneiro e "gigolô de prostituta pobre", Candeias dirigiu 15 filmes, de longas a curtas-metragens, dentre os quais A Margem (1967), considerado o precursor do cinema dito marginal. Os diretores que se encaixam nessa tendência preocupavam-se em retratar excluídos e personagens do submundo, de forma experimental e barata. Como define Rogério Sganzerla – um desses diretores – por meio do protagonista do seu O Bandido da Luz Vermelha: "Quando a gente não pode fazer nada, avacalha. Avacalha e se esculhamba".
Irônico, Candeias diz que a Boca está desmoralizada. "Hoje não há mais morte. O que tem é comércio de eletrônicos!" Ele sempre passa pela Rua do Triunfo, mas jura que nunca procura se aproximar das pessoas. "Eu tenho o cheiro da Boca e a psicologia daqui", poetiza, sentado em um bar instalado no porão de um casarão antigo e degradado. Em frente a esse mesmo boteco, outro prédio da Triunfo guarda um personagem que sonha com o dia em que a rua se tornará um marco arquitetônico do cinema. Há 43 anos na Boca, Cariolano Rodrigues Mineiro, o Rodrigo Montana, criou a Associação São Paulo, a Cidade e o Cinema. "Tive a idéia de criar essa entidade para ajudar as pessoas do cinema que estão paradas e passando apuros. Precisamos de trabalho", relata o homem que é um dos muitos que vivenciaram a época de maior produção cinematográfica do Brasil, mas hoje já não encontram espaço no mercado. "Aqui vai ter uma casa de saúde e uma de repouso para o pessoal do cinema", garante. Atualmente diz que está parado e disfarça quando o assunto é filme pornô. "Fiz uns dois para um amigo, mas há muito tempo", desconversa. Seu projeto mais ambicioso é fazer o "calçadão da Broadway Paulistana", com estátuas, chafariz, placas com nomes importantes da sétima arte, museu, biblioteca, sala de exibição... Proprietário da Montana Cinematográfica, ele coleciona recortes de revistas que servem de inspiração para seu projeto.
Para quem acreditava estar na Hollywood brasileira, a idéia de Montana é muito lógica. Rodrigo Pereira, jornalista e estudioso do cinema nacional, conta que assim pensavam as pessoas dali. "Porém, nada mais longe de Hollywood que a Boca do Lixo. Havia a ilusão de que aqui os resultados fossem duradouros como no cinema americano", comenta. No entanto, no começo da década de 80, as pornochanchadas já não davam mais retorno e teve início a onda dos filmes eróticos.
"Foram os aventureiros que deturparam a Boca", diz Mojica, referindo-se ao fato de grande parte dos profissionais se envolver em produções pornoeróticas. Muitos trocavam o próprio nome para não ter seu trabalho atrelado a esse tipo de filme. "Só eu tive coragem de manter o meu nos créditos", afirma o criador do Zé do Caixão. Com um sorriso malicioso, Mojica conta que foi o primeiro no Brasil a produzir um filme de zoofilia – sexo explícito com animais –, 24 Horas de Sexo Ardente (1985), o qual fez tanto sucesso que ficou um ano em cartaz. Ele conta também que foi na Boca que nasceram os famosos testes de sofá: "Tinha mãe que levava filha virgem para conseguir um papel nos filmes eróticos". Mojica montou escritório lá em 1966 e saiu da região no início dos anos 90, quando o então presidente da República Fernando Collor "acabou com o cinema nacional", ao reduzir drasticamente as verbas destinadas à sétima arte.
Segundo Rodrigo Pereira, a supervalorização do cinema da Boca por muitos de seus filhos tem uma explicação: "Para esse pessoal, recordar é conservar vivas as memórias do passado. É manter-se vivo".
Apesar das ricas lembranças, fica enroscado na garganta de todos aqueles que viveram o cinema da Boca do Lixo o desprezo de pessoas que passaram por lá e agora negam sua origem. "Muita gente que hoje está na Vila Madalena – novo reduto do cinema paulista – discrimina o pessoal da Boca, mas se esquece de todos os que passaram por aqui: Tarcísio Meira, Xuxa, Vera Fischer, Walter Salles, Carlos Reichenbach...", lamenta Índio. Na atual Rua do Triunfo, sobraram apenas três produtoras e uma distribuidora. Restam também hotéis e prédios de prostituição, edifícios abandonados e invadidos, botecos, muita degradação e uma aparência suja e desbotada, cinza.
Nasce o submundo
A Boca do Lixo se tornou o maior reduto da prostituição paulistana a partir de 1954. Antes, "essa atividade estava confinada, principalmente, ao bairro do Bom Retiro", explica Maria Izilda Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos da Mulher da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O confinamento não era oficial, mas um "acordo de cavalheiros". Porém, um decreto governamental, que proibiu a presença de prostitutas naquela área, fez da Boca – onde também já havia prostitutas antes – a referência do meretrício na capital paulista. Ali, a lei de malandros e prostitutas dividia espaço com o poder dos policiais. "Naquela época, o delegado do 3º Distrito Policial [responsável pela região] era o mais famoso da cidade", conta Percival de Souza.
Com a transferência do coração financeiro da cidade para a Avenida Paulista, os bairros centrais ficaram à míngua. Se, entre a década de 1940 e meados da de 70, achavam-se boates de relativo luxo na Boca, a prostituição de homens e mulheres de baixa renda, além da invasão do crack, mais recentemente, foram apenas a confirmação de sintomas do abandono que já se verificavam anos antes.
A boca de crack
"Pareciam leprosos saindo da catacumba, embrulhados em cobertores e com aparência cadavérica." Imagem tão impactante retrata os meninos e meninas dependentes de crack, que viviam na região da Boca do Lixo na primeira metade dos anos 90. Sônia Depieri, assistente social do Departamento de Investigações sobre Narcóticos da Polícia Civil (Denarc), lembra emocionada que essas crianças dormiam sob caminhões estacionados na rua durante a noite. A maioria morreu vítima de overdose, acredita ela.
"A cracolândia ainda existe, mas em menor escala e bem menos explícita", garante José Matallo Neto, delegado do 3º Distrito Policial, que cobre a região. Ainda se vêem adolescentes deitados pelo chão das ruas do entorno da Estação da Luz, mas são poucos. Vários fatores contribuíram para essa diminuição. Com o destaque dado pela mídia à cracolândia, a polícia intensificou a repressão à venda e ao consumo da droga. De acordo com o delegado, grandes operações tentaram barrar o tráfico no início do ano passado. Além disso, em 1999, o governo estadual investiu em pontos turísticos refinados, como a Estação Júlio Prestes, onde fica a Sala São Paulo – sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). "Limparam a região", resume Sônia.
A prostituição hoje
Na Rua dos Andradas, há um prédio baixo cuja escada parece não ter fim. É difícil contar o número de mulheres que ficam, uma em cada degrau, fazendo propostas indecorosas aos clientes, que só têm o trabalho de escolher uma delas e, por R$ 10, desfrutar de sua companhia por 15 minutos em um dos inúmeros cubículos ali existentes. Separados por divisórias de escritório, todos são sujos, mal-iluminados e têm as paredes pichadas de batom.
Ao longo da escada, encontram-se mulheres das mais diferentes idades, com curvas mais ou menos generosas. Em comum, só a dinâmica da prostituição a que se submetem: um programa para o dono do apartamento, outro para elas. Quando a mulher só consegue um cliente no dia, não há dúvida quanto a quem fica com o dinheiro: não é ela.
Val (nome fictício) tem 24 anos e, mãe de dois filhos, começou a fazer programas ainda adolescente. Já trabalhou em um prédio na Alameda Barão de Limeira, no mesmo esquema. Depois de dois anos "parada", teve de retornar. "Se você sobrevive à primeira vez, volta a fazer sempre que precisar", profetiza. Val é morena e, apesar de sua parca alimentação, tem a barriga saliente, "que não diminui nunca", reclama ela. Às vezes, fica em jejum o dia inteiro, mas, quando a fome aperta, sai para devorar um hot dog. Existe até um restaurante ao lado que vende quentinhas, e um funcionário percorre a escada anotando os pedidos. "Mas R$ 5 é muito caro. Tudo o que ganho fica para meus filhos."
Com o ensino médio concluído num supletivo, Val se diferencia da maior parte de suas colegas. "Algumas são até analfabetas", afirma. Quando se analisa o mundo paralelo da rua, qualquer generalização é arriscada. Porém, a baixa escolaridade e a falta de experiência em outros trabalhos são problemas comuns entre as meretrizes da Boca do Lixo.
Outra constante é a rotatividade. As que ficam na rua, principalmente, acabam perambulando pelos bairros centrais à procura de melhores pontos. "A gente tem a impressão de que a prostituição vai acabar por falta de clientes", diz Eliana Cruz, educadora social do Serviço à Mulher Marginalizada (SMM), uma organização não-governamental (ONG) que dá orientações de todo tipo a meretrizes de baixa renda do centro de São Paulo. A mesma depressão econômica que leva à escassez de interessados empurra um contingente cada vez maior de mulheres para essa atividade. "Há dias em que chegamos ao Parque da Luz e não reconhecemos ninguém", afirma Eliana.
O circuito de prostituição da Boca do Lixo, assim como de todo o centro da cidade, é servido por uma rede de "hotelecos" e casas, nas mais variadas combinações. Há mulheres que trabalham na rua e usam os quartos mediante um aluguel, que não passa de R$ 10 por programa. Outras fazem um acordo com o dono do hotel e ficam seduzindo os homens na porta do estabelecimento. "Nesse caso, elas se sentem mais seguras em relação à abordagem da polícia e à disputa por pontos", explica Eliana. Há ainda aquelas que trabalham em casas, sob a supervisão de uma gerente, que também faz programas. Via de regra, não existe nenhum tipo de controle violento sobre a mulher, mas ela tem de cumprir à risca as cláusulas desse contrato não-verbal. "Se faltar dois dias, já colocam outra em seu lugar", diz a educadora.
Em geral, "elas começam num lugar melhor, porque são novas, bonitas. Depois vão decaindo, e acabam no Parque da Luz ou na Praça da Sé", relata Eliana. Todavia, mesmo nesses locais – em que algumas chegam a trocar seus serviços até por vale-transporte – também trabalham mulheres que, se não cobram uma fortuna, pelo menos conseguem uma média de R$ 30 por programa.
Prostituição e violência
Bernadete trabalha desde os 12 anos como cabeleireira e, quando completou 17, passou a dividir seu tempo entre os salões de beleza e a prostituição no centro de São Paulo. Sua história de vida tem um capítulo marcante. Em 2002, ela fundou o Sindicato das Meretrizes do Estado de São Paulo. Porém, a formalização da entidade vem se arrastando na Justiça, até porque depende também da regulamentação do profissional do sexo.
Na década de 70, quando a Boca do Lixo era o reduto da bandidagem e manchete das páginas policiais, Bernadete passava o dia em um salão na Rua Barão de Campinas, a uma quadra do Quadrilátero do Pecado. "Às vezes a gente atendia mulheres que faziam programas na Boca. Elas andavam com giletes entre os dedos para se proteger", conta.
Apesar de nunca ter feito programas naquela região, hoje Bernadete caminha pelas ruas da Boca oferecendo preservativos a suas "colegas", como costuma dizer. Já viu de perto os chamados "lava-rápidos", em que a duração da relação é diretamente proporcional ao valor desembolsado pelo cliente: R$ 5 para a prostituta e a mesma quantia para o dono da casa. Nesses lugares, as mulheres que fazem programas não trabalham diariamente. O lava-rápido é um recurso para quem precisa de dinheiro urgente. Bernadete também conhece a realidade dos cinemas da Rua dos Timbiras, onde o sexo oral sai por míseros R$ 2. Quando perguntada se alguma vez já encontrou menores vendendo o corpo, responde espirituosamente: "Não tem idade; tem a necessidade".
Se, na época em que a Boca do Lixo era sinônimo de submundo, existiam mulheres capazes de botar muito malandro para correr, hoje a situação é um pouco diferente. Em alguns lugares próximos à Boca, como no Parque da Luz, fica difícil detectar à primeira vista uma profissional do sexo. "Algumas estão vestidas como a nossa avó", alerta Eliana. E algumas, realmente, já são avós. Por isso, para compreender a prostituição daquela região, é preciso abandonar preconceitos e estereótipos. "Muitas têm um cotidiano de dona-de-casa, sustentam a família", completa.
Outra idéia comum é a de que prostitutas são dependentes de algum tipo de droga. A socióloga Selma Lima percorreu a Boca do Lixo e o Parque da Luz, durante três anos, para fazer sua dissertação de mestrado sobre o impacto da entrada do crack naquela área. Ao final da pesquisa, concluiu que é impossível generalizar a relação entre meretrizes e o consumo de entorpecentes. "Usar álcool ou qualquer tipo de droga, quando se está na rua, pode fazer parte da sociabilidade. Não é necessariamente uma questão de dependência", afirma.
Também não é comum encontrar prostitutas que se dedicam ao tráfico. Quando muito, algumas fazem o serviço de "aviãozinho", repassando pequenas quantidades de drogas. "O tráfico existe, mas não predomina. Se a polícia aborda a prostituta e encontra droga, ela vai presa e sua vida acaba, porque tem contas para pagar no fim do mês", explica Ilza Monteiro, assistente social do SMM.
Preconceito
Bernadete chega ao salão da Igreja Santa Ifigênia, localizada na rua de mesmo nome, com alguns sacos de roupas usadas para distribuir às suas colegas. Assim como ela, lá se encontram mulheres de meia-idade que já não conseguem competir em pé de igualdade com as mais novas, mas não vislumbram outro meio de sobrevivência senão a prostituição. Toda terça-feira, religiosamente, "discutimos várias questões, de acordo com a necessidade delas: prevenção, vivência na rua, violência policial", explica Ivanete dal Farra, coordenadora da Pastoral da Mulher Marginalizada, que organiza a reunião.
"A prostituta carrega um estigma muito pesado, e é essa a nossa luta: fazer com que ela seja reconhecida como pessoa", diz Ivanete. Poucas são aquelas que, como Bernadete, assumem a profissão. "Meu filho não gosta de conversar sobre meu trabalho. Mas ele diz que sabe o quanto me esforcei para criá-lo", afirma. Porém, Val – a garota da Rua dos Andradas – é casada, e seu marido nem imagina o que ela faz durante o dia. E se soubesse? "Ele me bateria." E teria razão? "Sim", responde, sem titubear. Val até tentou arranjar um emprego de garçonete no restaurante de um conhecido, antes de voltar a fazer programas. Não conseguiu. E, se conseguisse, o salário de R$ 300 não seria suficiente para cobrir o orçamento.
Em um mês de movimento bom, no prédio da Rua dos Andradas, ela tira o triplo do que receberia como garçonete. Mesmo assim, quando Val, sem opção, decidiu retomar a vida de prostituta, passou o dia inteiro chorando. Às vezes, ela acorda no meio da noite, com fortes crises depressivas.
Hiroito, o Rei da Boca
O corpo mirrado era compensado pela segurança do revólver na cintura. Difícil crer que atrás dos óculos de lentes espessas – que ajudavam na leitura de Baudelaire e Heidegger – escondia-se um dos maiores bandidos que o submundo paulistano conheceu. Seu nome é Hiroito Joanides, e seu livro "Boca do Lixo", depois de décadas longe das livrarias, retornou no ano passado ao circuito editorial.
A obra não é propriamente um documento histórico, mas traz as memórias daquele que, entre os anos 1950 e 60, foi considerado o Rei da Boca. "O Hiroito preso era uma flor. Solto, nem tanto", revela Percival de Souza.
O livro esmiúça as relações entre criminosos, prostitutas e policiais, e traça o perfil de uma época em que a Boca estava substituindo a navalha pelo revólver. Filho de família católica e de médias posses, Hiroito foi preso, acusado de assassinar o próprio pai, mas sempre negou a culpa. Apesar de inocentado no caso, a fama de parricida o assombrou por toda a vida. "Não chega a justificar o meu bandeio para a vida do crime, apenas o torna compreensível", escreve. "Boca do Lixo" é um bom começo para compreender como funcionam as regras do submundo, a partir da vivência de um de seus principais representantes.
Comércio high-tech
Lojas, lojinhas e camelôs dividem espaço na Rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. O local é procurado por profissionais da área de eletroeletrônicos e consumidores em geral que vão em busca de produtos com preço abaixo do mercado. O economista João Bolsoni, diretor de relações públicas da Câmara de Dirigentes Lojistas da Santa Ifigênia, estima que entre 10 mil e 15 mil pessoas passam por lá todos os dias. A entidade é formada por um quadro de 120 empresas, as quais representam cerca de um quarto do comércio legal da região. Bolsoni insiste em dizer que todas as associadas são formalizadas e seguem a legislação.
A história da Santa Ifigênia sempre esteve ligada à atividade comercial. A rua atrai lojistas desde o surgimento da Estação da Luz, no início do século 20. No começo, lojas de vestuário, calçados, ferragens e selaria eram freqüentadas por fazendeiros e pessoas que residiam no interior do estado. Nos anos 1930 e 40, conta Bolsoni, com a popularização do rádio, a rua se transformou em local de mão-de-obra técnica especializada e de venda de produtos de vanguarda. Entre 1950 e 60, o comércio sofreu um redirecionamento, em função do surgimento da televisão e dos eletrodomésticos. Nas duas décadas seguintes, os computadores e a telefonia começaram a ganhar força.
Hoje, comenta Bolsoni, "a Santa Ifigênia traz para o centro produtos de ponta, com preços que sempre têm de ser os melhores do Brasil". E justamente pelo fato de serem baratos demais, muitos consumidores desconfiam de sua origem. O economista garante, no entanto, que essa vantagem se deve ao fato de os lojistas comprarem direto dos fabricantes e em quantidades muito grandes.
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