A arte de instigar personificada na trajetória destemida do ator, diretor e apresentador Antônio Abujamra
POR MANUELA FERREIRA
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Certa vez, enquanto servia como diplomata no consulado brasileiro na cidade de Marselha, na França, o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) hospedou um jovem compatriota na faixa dos 20 anos, que batera à sua porta de repente, sem aviso e sem qualquer tostão. Aquele visitante era o então estudante de filosofia e jornalismo Antônio Abujamra (1932-2015), que precisava de um abrigo. “Estava no meu período de vagabundagem. Passei pelo Norte da África, Líbano e, com dinheiro para apenas uma passagem de navio, desci em Marselha. Não tinha nada. Fui, evidentemente, procurar o consulado brasileiro e vi, no endereço, o nome do João Cabral, de quem tinha lido alguns poemas. Cheguei, ele me abriu a porta e disse ‘faça favor, a casa é sua’”, relembrou Abujamra, em 1989, em entrevista ao cartunista e escritor Ziraldo (1932-2024) para o programa O Papo, da TV Educativa do Rio de Janeiro.
O hóspede ficou 28 dias na companhia do autor de Morte e vida severina (1955). “Foi muito bonito (…) E foi ali, naquele período, que minha cabeça começou a dar uma mudada”, confidenciou Abu – como era carinhosamente chamado pelo público, imprensa e classe artística. A partir do encontro com João Cabral de Melo Neto, Abujamra adotaria uma das máximas cabralinas como seu lema pessoal: “É preciso não ter calos de vitórias. É preciso ser torcedor do América”. Abu dizia seguir essa ode ao destemor para jamais se apegar a reconhecimentos efêmeros. Assim, tomou fôlego para mergulhar, nos anos seguintes, no trabalho como diretor e encenador, tornando-se um dos principais nomes da revolução cênica produzida no país nos anos 1960 e 1970. Abujamra ainda ditou, na histórica conversa com Ziraldo, um conselho aos jovens: “Ponham a liberdade em ação. Enforquem-se na corda da liberdade. Não é impossível”.
Nos anos 1980 e 1990, dedicou-se a espetáculos de viés crítico nos quais o bom-humor e o pessimismo coexistem, uma de suas maiores marcas. Foram mais de 120 peças sob sua assinatura em mais de seis décadas de carreira – e, em muitos espetáculos, também atuou. Também levou seu estilo ousado e inventivo para a televisão. A partir de 2000, e durante 15 anos, esteve à frente do programa de “não entrevistas” Provocações, da TV Cultura. No encerramento de cada conversa, lançava aos interlocutores uma mesma pergunta para a qual confessava que ele próprio seguia buscando uma resposta por meio do seu inesgotável fazer artístico: “O que é a vida?”.
Toda esta rica produção e trajetória profissional são celebradas no livro Antônio Abujamra: rigor e caos (2023), lançamento das Edições Sesc São Paulo. A organização do volume é da escritora, diretora e encenadora Marcia Abujamra, sobrinha do artista [Leia mais em A eterna procura pelo novo]. “Habitualmente, assim começava o longevo programa de entrevistas Provocações: com o recitar de excertos de poemas ou de textos de autores célebres. Tais palavras, proferidas por Antônio Abujamra, demonstravam tanto sua excelente interpretação e erudição, como a precisão das escolhas realizadas, desde o conteúdo abordado até a relação das declamações com seus convidados”, rememorou, em texto na apresentação da obra, o sociólogo e gestor cultural Danilo Santos de Miranda (1943-2023), diretor do Sesc São Paulo de 1984 a outubro de 2023.
“Abu (…) portava-se como o grande incitador que foi, evidenciando características que moldavam sua persona pública: inteligência, sagacidade e humor peculiar”, destacou Santos de Miranda na publicação. Após a graduação em jornalismo, Abujamra iniciou a carreira como crítico teatral, mas suas primeiras incursões nos palcos aconteceram somente na segunda metade dos anos 1950, no Teatro Universitário de Porto Alegre (RS), com a adaptação de O marinheiro, de Fernando Pessoa (1888-1935), outra de suas paixões. Até que veio o primeiro voo mais distante para o jovem artista, um dos dez filhos de um comerciante e uma dona de casa, ambos de origem modesta: em 1959, Abu recebeu uma bolsa para estudar língua e literatura espanholas e partiu para a Europa.
Nas bases que estruturam o impacto e a relevância do seu trabalho como diretor, há dois marcos que datam desta época. O primeiro foi o estágio com o diretor francês Roger Planchon (1931-2009), com o qual acompanhou as montagens de Henrique IV, de William Shakespeare (1564-1616), e Almas mortas, de Nikolai Gogol (1809-1852). Outro momento que impulsionou o artista foi o período como aprendiz do diretor francês Jean Vilar (1912-1971), um dos nomes mais influentes do teatro contemporâneo, com quem pôde trabalhar na montagem de A resistível ascensão de Arturo Ui, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), encenado no Théâtre National Populaire, em Paris.
Na volta ao Brasil, dirigiu, em sequência, Raízes, de Arnold Wesker (1932-2016) e José, do parto à sepultura, de Augusto Boal (1931-2009). Anos mais tarde, criou o Grupo Decisão – em sua companhia estavam os atores e diretores Antônio Ghigonetto (1930-2010) e Emilio Di Biasi (1939-2020). A intenção era disseminar o teatro de caráter político, em oposição e resistência aos tempos de repressão que se aproximavam. “Ainda em 1963, estreiam Terror e miséria do Terceiro Reich e Os fuzis da Sra. Carrar, ambos de Brecht, levando aos bairros periféricos de São Paulo um repertório voltado para a mobilização política e a discussão da realidade nacional. No ano seguinte, o grupo monta O inoportuno, de Harold Pinter (1930-2008), e transfere-se para o Rio de Janeiro, onde o espetáculo chama a atenção, abrindo portas para seus realizadores”, detalhou o crítico teatral, professor e pesquisador Edélcio Mostaço em Antônio Abujamra: rigor e caos.
“Agora radicado no Rio, o Grupo Decisão decide apresentar, com direção de Abujamra, em 1965, Electra, de Sófocles (497 a.C – 406 a.C), produção prestigiada pela crítica e pelo público, tendo como protagonista a atriz Glauce Rocha (1930-1971). Segundo o crítico Yan Michalski (1932-1990), as encenações de Abujamra são, nessa época, subversivas e apaixonadas”, escreveu Mostaço. Ao lado da atriz Nicette Bruno (1933-2020) e do ator Paulo Goulart (1933-2014), Abu dedicou-se também ao grupo Teatro Livre, realizando montagens como As Criadas (1968), de Jean Genet (1910-1986).
Mesmo experimentando sucessos comerciais, engajou-se no projeto para a recuperação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até então um espaço abandonado na região central da capital paulista – em 2022, o Sesc São Paulo assumiu a administração do edifício, que sediará as futuras instalações da unidade Sesc TBC. Também capitaneou a abertura de novas salas e tomou a dianteira no movimento que traria novos autores e diretores para o TBC, entre eles o italiano Giovanni Testori (1923-1993), autor de Hamletto (1981).
As passagens de Abujamra pela televisão também se notabilizam pela singularidade. Dirigiu especiais na extinta TV Tupi e, em 1975, comandou um icônico episódio do programa Ensaio, da TV Cultura, com a cantora e compositora Maysa (1936-1977), no qual a artista transcende em uma catártica apresentação intimista. Foi o mais popular dos personagens da novela Que rei sou eu?, criação de Cassiano Gabus Mendes (1927-1993), exibida pela TV Globo entre 1988 e 1989. Na pele do vilão Ravengar, um bruxo com sede de poder, deu mostras de uma interpretação tida como impecável. Já nas ruas, o doce e amigável Abujamra era mais adorado do que temido.
Antes, já havia conquistado os espectadores, em 1987, por sua estreia como ator no monólogo O Contrabaixo, de Patrick Süskind. Na década seguinte, fundou a companhia Os Fodidos Privilegiados, na qual primou pelo deboche e o exagero, e conquistou plateias – entre os sucessos do grupo estão os espetáculos Um certo Hamlet (1991) e O Casamento (1997). Para além dos sucessos, o encenador também nomeava seus fracassos de público, como as montagens de As fúrias (1996), de Rafael Alberti, e Tartufo (1966), do dramaturgo francês Molière (1622-1673) – considerava-os alguns de seus insucessos retumbantes, com os quais dizia, era também preciso saber conviver.
Antônio Abujamra: rigor e caos, das Edições Sesc São Paulo, reúne a contribuição corajosa de Abu para as artes do país
Em 2018, o Sesc Ipiranga recebeu a exposição Rigor e Caos – Antônio Abujamra, que percorria mais de cinco décadas de trajetória do artista através de extenso material audiovisual. Com o intuito de aprofundar análises sobre a obra do encenador, seus caminhos e marcas ganharam vida nas páginas de Antônio Abujamra: rigor e caos (2023), lançamento das Edições Sesc São Paulo. A obra lança luzes sobre a carreira de Abu, desde seus emblemáticos primeiros passos, enquanto ainda era estudante da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), até desembocar na sua vertente mais popular, a do provocativo, mordaz e espirituoso apresentador televisivo.
A publicação é composta por artigos de especialistas que abordam os aspectos mais relevantes da produção de Abu. A obra também traz uma seleção de homenagens feitas por amigos, como o diretor José Celso Martinez Corrêa (1837-2023), o cineasta Ugo Giorgetti e o autor de telenovelas Silvio de Abreu. O livro reúne, ainda, depoimentos de fôlego assinados por nomes que conviveram e atuaram com Abujamra, como as atrizes Claudia Abreu e Vera Holtz; a diretora e professora de teatro Johana Albuquerque; e os também encenadores Antunes Filho (1929-2019) e Felipe Hirsch.
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
Antônio Abujamra: rigor e caos (2023) | Organização de Marcia Abujamra | sescsp.org.br/edições
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