Poemas inéditos de Márcia Wayna Kambeba ilustrados por Karen Suehiro

30/12/2023

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Leia a edição de JANEIRO/24 da Revista E na íntegra

Marco temporal

O marco Temporal

É um projeto legislativo

A continuação do domínio colonial

De invasão e dominação

Do genocídio atualizado

Que não tem data para terminar

Esse projeto não foi dialogado

Com quem sente, vive e conhece a história

Foi pensando visando

A ganância de poucos

Em detrimento da dor de muitos

Estamos antes de 1988

Das coroas de Portugal e Espanha

Enfrentamos as primeiras invasões

E no século XXI

Querem nos destruir

Para tomar o que restou.

Antes era a cruz e a espada

Hoje é a canetada

Votação no Congresso e Senado

Tudo em nome do Progresso

Que nunca parou de destruir

Com nossos territórios ancestrais

Sentimos hoje a mesma dor e insegurança

Lutamos com a mesma intensidade

Dos nossos Ancestrais

Para não ver nossos povos

Serem expulsos de suas terras

Por invasores que não nos deixam em paz

Estamos em constante guerra.

Marco Temporal jamais!

Não nos representa

É retrocesso.

É voltar à cena de 1500

Com um agravante pior

Destruir com nossas terras hoje

É assassinar o clima

Contribuir para o aquecimento global

É dominar para destruir

E a gente assiste a cena

Mas não permitiremos novas mortes

Marco Temporal não!

Ele é a votação da morte

Lutaremos como nossos avós e bisavós

Até o fim.

Maria de todas as Marias


Maria dos grandes rios

Das barrancas e igapós

Maria de muitos sonhos

Amazônias

Somos muitas não estamos a sós

Maria

Dos furos e igarapés

De profundos olhares

Das rezas, benzimentos

Dos terreiros e encantarias  

Marias, nossas pajés

Maria mãe da mata

Maria do cocar

Das lutas nas aldeias

Força no caminhar

Senhora das águas

Rogai por nós!

Maria mulher guerreira

De força ancestral

Resistência territorial

Maria das multivozes

Rainha, rogai por nós!

De joelhos em silêncio

Na dor e na alegria

Te pedimos em oração

Mais amor ao coração

Que chegue aos céus

Nossas vozes

De súplica e devoção

Somos romeiros e romeiras

Somos filhos, somos irmãos

Te pedimos por tantas Marias

Que tiveram a vida interrompida

Na dor e crueldade

Marias de várias etnias

Que agora estão na ancestralidade

Salve Maria!

Mãe de toda a gente

Do menino de rua

Do mendigo

Do migrante

Do indigente

Maria agricultura

Maria anciã

Pescadora

Lavadeira

Benzedeira

Parteira

Riozeira

Professora

Maria mãe solteira

Maria de muitas Marias

Dai-nos paz e proteção

Aumentai a nossa fé

E sede sempre intercessora.

Para sempre Amazônias

Senhora Amazônia

Teus rios voadores

Tuas matas sagradas

Teu solo fecundo

Nós vamos guardar

Canoas e remos

Estrada molhada

Por entre as árvores

O sol nascerá

São janelas que se abrem

No meio da mata

Para olhar com esperança

A vida na terra

Para ver o mapinguari

A Matinta e o Matim Tim

Curupira enganar o caçador

E botar para correr

Quem chega na Amazônia para tocar o terror

Sinto o vento vargeiro

Chegar bem devagar

Seu sopro é mensageiro

Traz segredos do rio e do mar

Quero mais que 80%

De mata em pé

Quero mostrar ao curumim

O que lhe é de direito proteger

Para no fim descansar

No mundo da ancestralidade

Sany Amazônia

Sany paranawaçu

Iapã indá tana Saisu

Iapã kumiça muki may-sangara tuiuka.

Ikumi, ikumi, ikumi

[Tradução:

Vem Amazônia

Vem grande rio

Vamos cantar nosso amor

Vamos falar com a alma terra

Hoje, hoje, hoje]

Amazônia menina

Meu rosto eu pintei

Na água me espiei

Grafismo de identidade

Resistência!

Sou Amazônia

De alma e águas Kunhãs

Eu sou

Tenho continuidade

Na voz  cunhantã (menina)

Que da canoa falou:

Quero peixe com farinha

Sem veneno para comer

Ver o rio correr seguro

Ter água potável para beber

Abraçar a samaumeira

Os encantados reverenciar

Conversar com o boto rosa

Ver a donzela por ele se encantar

Tomar bença ao pajé

Na mata buscar remédio e cura

Quero ver a terra limpa

Sem lixo, lixões, sem secura

Sou a Amazônia

Presente em tantas gerações

Nas populações que ensinam

Que para cuidar, conservar

É preciso conviver e respeitar.

Se ver ambiente

Para o clima não se alterar

E o mundo não degradar.

Sou o futuro, sou resistência.

Palha velha e palha nova

Palha velha

Palha nova

Uma morre

Para outra viver

Palha velha

No chão vira adubo

Para nova planta crescer

Palha velha

Palha nova

Entrelaçadas

São obras da natureza

Palha velha

Palha nova

Tem valor, cultura

Utilidade, cooperação

Obra-prima da realeza

Palha velha

Palha nova

Tem vida e certeza

Que um dia seremos adubos

Para outras gerações florescerem.

  • Márcia Wayna Kambeba, da etnia Omaguá/Kambeba, nasceu numa aldeia ticuna, em Belém do Solimões, atualmente no município de Tabatinga (AM). Poeta e geógrafa, é mestre pela Universidade Federal do Amazonas, com uma pesquisa que relaciona território e identidade étnica. Em sua produção poética, Márcia se aproxima da literatura de cordel para refletir sobre questões como a violência contra os povos indígenas e os conflitos trazidos pela vida na cidade.
  • Karen Suehiro é ilustradora, artista visual e se apresenta como mulher amarela. Trabalhou com design gráfico por mais de 10 anos, mas desde 2018, quando foi diagnosticada com epilepsia, decidiu focar em sua verdadeira paixão pela ilustração. Essa que também se tornou parte do seu processo de cura, uma vez que o interno é parte importante que transborda em suas artes. É transformar o invisível em visível.

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