Leia a edição de abril/22 da Revista E na íntegra
No primeiro ano da pandemia, 275 milhões de pessoas em todo o mundo fizeram uso de substâncias psicoativas, enquanto mais de 36 milhões sofreram algum transtorno por este uso, segundo relatório divulgado pelo Escritório sobre Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC) em junho de 2021. Por trás deste cenário, há um emaranhado de questões de âmbito social, econômico, político e cultural que precisam ser analisadas por especialistas de diversas áreas. “Entre o usuário na ponta, que tem sua vida e suas relações familiares e sociais devastadas pelo uso abusivo de uma determinada substância psicoativa, e toda a trama que envolve sua produção, circulação e comercialização, há densas camadas que fazem com que as experiências singulares e cotidianas – dada sua excessiva carga afetiva – encubram, por vezes, toda a complexidade ideopolítica e socioeconômica envolvida”, analisa a assistente social e coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS-SP), Fernanda Almeida.
Para a coordenadora do Ambulatório e Projeto A Cor da Rua, no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, Carmen Santana, “os mecanismos mais efetivos na redução da vulnerabilidade a transtornos relacionados ao uso de drogas são os que operam na prevenção e na promoção da saúde”, aponta. Neste Em Pauta, Santana e Almeida, especialistas que fizeram parte do primeiro módulo do curso Questão Social das Drogas, realizado pelo Sesc São Paulo em outubro do ano passado, trazem essas e outras reflexões sobre o tema neste mês em que se celebra o Dia Mundial da Saúde (7 de abril).
Por Carmen Santana
As mudanças do modelo de atenção à saúde mental preconizadas pela reforma psiquiátrica no Brasil fazem parte de um processo social complexo que exige, entre outras transformações da clínica, uma revisão epistemológica na produção do cuidado em saúde mental. Trata-se do redirecionamento de um cuidado antes centrado na internação hospitalar para uma atenção focada em serviços de base comunitária. Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela constituição de 1988, teve início o processo de descentralização do atendimento de saúde mental, antes realizado prioritariamente em grandes hospitais psiquiátricos.
A Política Nacional de Saúde Mental preconiza que a atenção aos usuários do SUS deve ser feita dentro de uma rede de cuidados. Estão incluídos nesta rede: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os ambulatórios de saúde mental, a Atenção Primária à Saúde, os pronto-socorros, o SAMU (Serviço de Assistência Móvel de Urgência), as residências terapêuticas, as enfermarias psiquiátricas em hospital geral, hospitais psiquiátricos e os centros de convivência.
Qual o papel da Atenção Primária à Saúde (APS) no SUS? A APS é a porta de entrada para a rede de saúde no Brasil. Constitui um conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas. Os serviços oferecidos pela APS são realizados por equipe multiprofissional e envolvem: promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde, segundo a Política Nacional da Atenção Básica (Ministério da Saúde, 2017). O atendimento é oferecido em unidades básicas de saúde (UBS), próximas à moradia de seus usuários, o que facilita o acesso e a continuidade dos cuidados. A APS deve se responsabilizar pela atenção aos problemas de saúde mais frequentes e coordenar a integração dos cuidados oferecidos por especialistas.
A formação generalista dos profissionais da APS permite o cuidado integral (cobrindo todos os aspectos da saúde, sem separar o físico do mental), centrado na pessoa, e não em doenças ou sistemas fisiológicos isolados. Por acompanhar seus pacientes ao longo da vida, a Atenção Primária tem papel fundamental no cuidado das doenças crônicas e na reabilitação psicossocial (Garcia & Santana, 2012).
A inserção da Atenção Primária em uma comunidade não deve ser apenas geográfica, mas também propiciar conhecimento sobre hábitos e cultura de seus moradores, sobre as vulnerabilidades e os recursos do território onde vivem. Isso permite desenvolver intervenções que dialoguem com as diferentes realidades das populações, e se integrem com recursos para além da saúde (como educação, cultura e esportes). Essa proximidade é fundamental, por exemplo, em ações que pretendem mudar hábitos de vida, como a dieta, o consumo de álcool e outras drogas, o exercício físico, ou problemas como a violência doméstica (Starfield B, 2002). Os mecanismos mais efetivos na redução da vulnerabilidade a transtornos relacionados ao uso de drogas são os que operam na prevenção e na promoção da saúde.
1. A APS aumenta o acesso ao tratamento. O Relatório Mundial sobre Drogas, de 2021, mostrou que aproximadamente 275 milhões de pessoas usaram drogas em 2020; enquanto cerca de 36 milhões sofreram de transtornos associados ao uso de drogas. Estima-se que o impacto social da Covid-19 contribuiu para um aumento ainda maior do consumo em 2021. Transtornos relacionados ao uso de substâncias são condições variáveis, classificadas de acordo com critérios internacionais para diagnóstico de transtornos mentais. Pouca escolaridade e pobreza são fatores importantes associados ao desenvolvimento desses transtornos.
Populações vulnerabilizadas e marginalizadas enfrentam barreiras adicionais ao tratamento em decorrência da discriminação e estigma. Em áreas cobertas pela APS no município de São Paulo, os mais pobres e menos escolarizados acessavam os serviços de saúde tanto quanto o restante mais favorecido da população (Goldbaum et al., 2005). Além disso, a proximidade com os usuários e a responsabilização em longo prazo da APS facilitam a busca ativa de pacientes que perdem o contato com o sistema, o que é fundamental no seguimento dos transtornos mais graves e persistentes.
2. Os problemas mentais e físicos estão inter-relacionados. O uso abusivo de drogas pode trazer problemas físicos. A APS permite um cuidado integral e holístico desses problemas, evitando a fragmentação de intervenções.
3. A intervenção precoce é importante. O primeiro contato com o serviço de saúde em busca de tratamento, realizado na APS, é um fator crucial para que a intervenção precoce possa ocorrer. Neste nível de cuidado é possível reconhecer sinais e sintomas de abuso de drogas, discutir o risco envolvido, fazer orientações para famílias e encaminhar os pacientes para serviços especializados quando indicado.
4. A APS tem custo efetivo e economicamente viável. A oferta de cuidados em saúde mental próxima ao local de moradia das pessoas possibilita o melhor aproveitamento de recursos comunitários já existentes, e a diminuição de custos indiretos com meios de transporte e tempo de deslocamento. Estimativas sobre a ampliação dessas intervenções revelaram que elas são viáveis economicamente, inclusive em locais de baixa renda.
“AO LONGO DO TRATAMENTO É ESSENCIAL QUE O SUJEITO TENHA VOZ
EM SEU PROCESSO DE RECUPERAÇÃO. É NO COTIDIANO, NA COMUNIDADE,
QUE SE TRABALHA O RESGATE DA AUTONOMIA E DA CIDADANIA”
No entanto, a despeito das evidências científicas, parte da sociedade e alguns programas de governo insistem em defender uma política pública pautada em internações involuntárias ou compulsórias para o cuidado às pessoas com transtornos relacionados ao uso de drogas. Estes programas frequentemente têm como foco a população em situação de rua. Mas a recuperação deste tipo de problema ocorre ao longo da vida, e o cuidado deve ser feito por meio da integração de um conjunto de estratégias terapêuticas que não necessariamente irão envolver a internação.
Ao se tratar da população em situação de rua na cidade de São Paulo, o Censo realizado em 2019 indicou que mais da metade (60%) passou por internação em alguma instituição. Destacam-se as clínicas de recuperação de dependência de drogas ou álcool (32,1%) e o sistema prisional (31,2%), abrigos para infância (13,4%), além de instituições psiquiátricas (13%) e Fundação Casa (11,9%). Sobre o uso de substâncias psicoativas, 83% das pessoas declarou fazer uso de álcool e/ou outras drogas. Cigarro (65%) e álcool (56%) são as substâncias mais usadas, seguidas de maconha (28,9%) cocaína inalada (22,3%), crack (18,9%) e inalantes (5,3%)
Desde 2011, o Brasil tem equipes multiprofissionais de Atenção Primária à Saúde (APS) voltadas especialmente para pessoas em situação de rua: os consultórios na rua. O programa atualmente tem 158 equipes, 25 das quais na cidade de São Paulo. A falta de moradia é um desafio constante para estes profissionais no tratamento dos transtornos relacionados ao uso drogas. É muito difícil implementar um projeto terapêutico considerando as condições de vida na rua, mas uma internação não resolve a falta de moradia. Políticas sociais como o programa Housing First ou “Moradia Primeiro” são as estratégias de cuidado mais bem-sucedidas para esta população.
Internar uma pessoa para o tratamento da dependência química é um procedimento que pode ser ou não utilizado no projeto terapêutico. Mas não deve ser uma política pública. Por outro lado, o cuidado na comunidade, especialmente no âmbito da APS, é sempre indicado. Ao longo do tratamento é essencial que o sujeito tenha voz em seu processo de recuperação. É no cotidiano, na comunidade, que se trabalha o resgate da autonomia e da cidadania.
CARMEN SANTANA é graduada em medicina pela Santa Casa de São Paulo, com residência em Psiquiatria, mestrado em Medicina e Doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Em 2013, concluiu o mestrado International Master in Mental Health Policies & Services na Universidade Nova de Lisboa/OMS. Participou da implantação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família como psiquiatra e pesquisadora na área de Saúde Mental na Atenção Primária. Foi professora afiliada e visitante na UNIFESP (2013-2021). Atualmente é pós-doutoranda e coordenadora do Ambulatório e Projeto A Cor da Rua, no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Por Fernanda Almeida
(...) Viver é muito perigoso. Viver é um rasgar-se e remendar-se. Guimarães Rosa
Escolher um caminho para analisar a questão das drogas é sempre privilegiar um ou mais aspectos, em prejuízo dos demais. As áreas de pesquisas científicas são diversas – antropologia, direito, história, medicina, psicanálise, psiquiatria, sociologia, entre outras tantas – e por vezes são complementares, portanto, considero que não deve – ou não deveria – existir uma hierarquia do conhecimento sobre o tema. Ocorre que a questão das drogas é um campo, por primazia, permeado por disputas ideológicas e interesses díspares. O fato é que, entre o usuário na ponta, que tem sua vida e suas relações familiares e sociais devastadas pelo uso abusivo de uma determinada substância psicoativa, e toda a trama que envolve sua produção, circulação e comercialização, há densas camadas que fazem com que as experiências singulares e cotidianas – dada sua excessiva carga afetiva – encubram, por vezes, toda a complexidade ideopolítica e socioeconômica envolvida.
Desde que comecei a estudar e pesquisar sobre a questão das drogas, vi o quão emaranhado e labiríntico pode ser este campo. A complexidade é inerente ao debate por vários aspectos. Enumerá-los aqui, seria, por si só, uma tarefa árdua. De maneira breve, é possível afirmar que a multiplicidade reside no fato de que as abordagens e análises podem ser tanto de ordem política quanto econômica. Assim como, se analisada em seus aspectos culturais e éticos. Requer, ainda, um cauteloso exame entre os aspectos legais, em detrimento de todo o moralismo envolvido. Não podendo, em hipótese alguma, prescindir de um abrangente estudo social e de saúde. Contudo, e ao mesmo tempo, é preciso ter noção de que a dinâmica cotidiana enovela todas estas dimensões e as tornam absolutamente imbricadas.
Começo com este briefing para apresentar e justificar meu “lugar ao sol” neste debate. Sou trabalhadora do Sistema Único de Saúde (SUS) e atuo em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas (CAPS-AD). Portanto, devo advertir que me interesso mais pelas pessoas e por suas relações sociais, do que pelas substâncias em si, embora eu reconheça e valorize o pioneirismo da pesquisa científica nesta área. A cannabis medicinal, por exemplo, está aí e há evidências científicas consolidadas que comprovam seus benefícios para o tratamento de diversas doenças crônicas e neurológicas graves. Ademais, o renomado neurocientista e pesquisador afro-americano Carl Hart sugere que todos os profissionais que acolhem pessoas que fazem uso abusivo e/ou nocivo de substâncias psicoativas tenham algum grau de conhecimento sobre elas e também sobre seus efeitos positivos e negativos no organismo e no psiquismo humano.
Em 2020, Hart radicalizou ainda mais seu posicionamento sobre o tema. Em uma obra ousada – Drogas para Adultos – ele assume a sua condição de usuário ocasional e convida todos a romperem com a hipocrisia e se assumirem como usuários, afinal, diz ele, todos nós, em alguma medida, consumimos substâncias psicoativas em algum momento das nossas vidas, sejam elas substâncias lícitas ou ilícitas. Fundamentado em evidências científicas e em experiências pessoais, ele mostra como é possível ter uma vida responsável e equilibrada, na qual as drogas podem fazer parte e cumprem uma importante função psicossocial.
Com isso, ele busca demonstrar que a ciência não está voltada para pensar no prazer, insiste que esta é uma reivindicação social mais que legítima, e que a incorporação de uma lógica libertária quanto ao uso traria muitos benefícios para a sociedade. Para ele, o desafio é ampliar o entendimento de que uma parte significativa das pessoas busca, com o uso das substâncias, a sua “felicidade”. A busca do ser humano pela alteração ou perturbação da consciência é um fato histórico, mas, por haver medo de um aumento do consumo, as políticas sobre drogas, hegemonicamente, estão focadas em seus efeitos negativos, com isso, os resultados são quase sempre repressores, asilares e manicomiais.
Em 24 de junho de 2021, o Escritório sobre Drogas e Crimes das Nações Unidas (UNODC) lançou uma nota pública para a imprensa na qual afirma o aumento do risco do uso de drogas na pandemia. Num tom um tanto alarmista, chama a atenção para o dado de que 275 milhões de pessoas em todo o mundo fizeram uso de substâncias psicoativas em 2020, enquanto mais de 36 milhões sofreram algum transtorno por este uso. O relatório também enfatiza o aumento da concentração de THC – um dos componentes psicoativos da cannabis – enquanto há uma redução da percepção dos riscos do uso da maconha entre os jovens.
Como comentei de início, quando o tema é drogas, temos que ver o emaranhado, só assim seremos capazes de desatar os nós. O fato subsumido na nota do UNODC é que dos 275 milhões que usaram substâncias psicoativas, 239 milhões não tiveram problemas, ou seja, 86,9%, a maior parte das pessoas. Não desprezo, de forma alguma, a importância das políticas de saúde e prevenção, sendo este o meu trabalho diário, inclusive. Mas saliento que a ênfase na narrativa problemática sobre o uso tem gerado questões que embaralham ainda mais o campo e não ajudam na prevenção, pelo contrário, difunde a ideia de que todo uso é potencialmente perigoso, quando sabemos que não é verdade. Por outro lado, proteger crianças e adolescentes, com vistas a prevenir o uso precoce, é uma tarefa que exige um amplo aparato de políticas públicas.
Ao mesmo tempo, o discurso alarmista sobre o uso de drogas cumpre um papel ideológico importantíssimo. Historicamente, o paradigma do proibicionismo contemporâneo, apoiado na fantasmagoria do perigo das drogas, dá a sustentação necessária para a manutenção da Guerra às Drogas. Guerra que pode ser considerada falida quanto ao seu propósito de eliminar as drogas do planeta, e, em contrapartida, bem-sucedida quanto à manutenção do poder e da geopolítica que estruturam os interesses econômicos e políticos do narcotráfico mundial. Johann Hari, no livro Na Fissura: uma história do fracasso no combate às drogas desnuda os bastidores dessa guerra mundial e insana. Embalado pela voz grave de Billie Holiday, Hari explicita aquilo que Emicida condensou em uma só frase: 80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo. A Ismália de Emicida é preta, a maior voz do jazz mundial no século 20 também era preta. A mesma guerra que calou Billie também pôs fim na vida de Evaldo Rosa dos Santos, homem preto, alvejado na frente de sua família. Por este ângulo, Ismália é a representação do silenciamento imposto aos negros. No Rio de Janeiro, somente em 2020, 12 crianças negras e pobres foram mortas em conflitos armados em razão do controle do tráfico de drogas. A face mais perversa da guerra às drogas reside no controle ético-racial dos corpos. Um genocídio amainado por uma narrativa que busca convencer que o livramento da humanidade contra os males das drogas está na força bélica. Billie Holiday cantou Strange Fruit para seus algozes, os comoveu, mas não impediu sua própria perseguição até a morte.
“A MASSIFICAÇÃO IMPOSTA PELAS POLÍTICAS CONSERVADORAS E MANICOMIAIS ESVAZIA AS POSSIBILIDADES DO CUIDADO SINGULAR”
O que me interessa aqui é dialogar com a narrativa dos riscos atribuídos a estas ações. Afirmo sem pestanejar que sim, há riscos. A pergunta que emerge é: com as drogas, não haveria a possibilidade de um dia chegarmos ao ponto de uma regulamentação que implica na análise de riscos e no acompanhamento, com equilíbrio, do poder público? E mais, qual é o limite da intervenção do Estado na esfera privada da vida? É papel do Estado regular o desejo de escolher fazer uso em si de qualquer substância? É papel do Estado interferir no desejo de alteração da consciência? Quais foram e quais são os critérios para definir a licitude ou ilicitude das substâncias psicoativas?
No curso “A Questão Social das Drogas”, promovido pela Gerência de Estudos e Programas Sociais (GEPROS) e pelas unidades Carmo, Bom Retiro e Parque Dom Pedro do Sesc São Paulo, tivemos a oportunidade de debater abertamente sobre estas e outras questões. Partimos de quatro pressupostos fundantes, balizas que convidam à reflexão sobre as drogas, para além do binômio “sou a favor, sou contra”: 1) todo ato humano implica algum grau de risco; 2) a soberania do indivíduo sobre seu próprio corpo; 3) a história das drogas é parte integral da história geral da humanidade e 4) o uso de substâncias psicoativas acompanha as determinações históricas e sociais de cada tempo. Tive a oportunidade de ministrar a aula de abertura que teve como tema “Questão Social das Drogas: Introdução e Panorama Geral”. Este primeiro encontro teve como objetivo apresentar uma introdução aos diferentes usos de drogas em sociedade, assim como expor as dimensões do sofrimento psíquico e os impactos sociais e políticos do proibicionismo.
Tenho convivido diariamente com pessoas que fazem uso abusivo ou problemático de substâncias psicoativas. A intensidade do vínculo é por vezes demasiada, impõe aos profissionais plasticidade psíquica e certo despojamento. Aqueles que os rotulam como “zumbis desalmados” não fazem a menor ideia da potência das subjetividades nestes encontros – há vida, desejos, sonhos, mágoas, abandono. A massificação imposta pelas políticas conservadoras e manicomiais esvazia as possibilidades do cuidado singular. Na contramão, alguns trabalhadores dos CAPS-AD sustentam o legado que estrutura a Reforma Psiquiátrica Brasileira, pautada na liberdade como princípio terapêutico e contra toda forma de manicomialização da vida.
Nesse sentido, o trabalho nos CAPS-AD consiste em elaborar projetos terapêuticos singulares em que os sujeitos possam estabelecer outra relação com as drogas, se possível abstendo-se do uso e, quando isso não for possível, cabe aos profissionais acolhê-los, orientá-los com a perspectiva de reduzir danos. Dartiu Xavier diz que, “o uso de drogas pode ser associado à necessidade de alívio da angústia inerente à condição humana. Quando se pensa em prevenção, o desafio é encontrar outras maneiras de tornar essa angústia suportável, visando transformação e, não, alienação”.
No curso, tivemos oportunidade de demonstrar como o uso de substâncias psicoativas acompanha as determinações históricas e sociais de cada tempo. Passados os primeiros 20 anos deste milênio, estamos certos de que vivemos um tempo absolutamente disruptivo. O neoliberalismo, como sociabilidade do mundo, impõe uma nova razão. As formas e manifestações cotidianas deste processo estão por serem compreendidas. Estou certa de que a relação que as pessoas estabelecem com as substâncias psicoativas diz mais sobre as vicissitudes da própria sociedade do que sobre os efeitos das substâncias em si. Em artigo publicado em 05/05/2021, no portal do Sesc São Paulo – Não existe porta de entrada para menino de rua –, busquei demonstrar “a problemática” das drogas como uma expressão da questão social.
Às vezes, me pego pensando, é falacioso imaginar um mundo sem drogas, mas acredito e tenho esperança de que possamos ter um mundo em que a violência, sobretudo, fruto da proibição, possa ter seu fim, isso sim é factível. Isso sim é desejável.
FERNANDA ALMEIDA é assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS-SP). Atua na Rede Pública de Saúde (SUS) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Psicanalista Clínica em formação, aluna do Curso Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Ilustrações: Luyse Costa
A EDIÇÃO DE ABRIL/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Nas páginas deste mês, você descobre maneiras de alcançar qualidade de vida e bem-estar a partir de iniciativas que defendem a desaceleração da sociedade do desempenho e o estímulo à reconexão humana e com o meio ambiente. Aproveite para conhecer o projeto Inspira – Ações para uma vida saudável, com ações em diversas unidades do Sesc São Paulo.
Além disso, a revista de abril traz outros destaques, como o projeto Quadro a Quadro, que ocupa as redes sociais do Sesc Pompeia com HQs inéditas; um apanhado visual das obras que compõem a 30ª edição da MAJ – Mostra de Arte da Juventude, do Sesc Ribeirão Preto; um passeio poético por fotografias de janelas da capital paulista; um depoimento da cantora Fernanda Takai sobre o disco recém-lançado, pandemia, fake news, processo criativo e maternidade; um perfil de Mário de Andrade (1893-1945), vanguardista paulistano que foi um dos protagonistas do movimento modernista; uma entrevista com a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik sobre mobilidade e acesso à cidade; o relato de Eduardo Góes Neves, arqueólogo e historiador que conduz pesquisas na região amazônica e que, neste mês, estreia uma série no Sesc TV; e dois artigos que, no mês em que se celebra o Dia Mundial da Saúde, refletem sobre a questão social das drogas.
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