Medalhista olímpica e campeã mundial na ginástica artística, Rebeca Andrade fala dos desafios e motivações para superar as adversidades
Leia a edição de abril/23 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
Já faz quase duas décadas que Rebeca Andrade foi incentivada por uma tia a realizar um teste num ginásio municipal de Guarulhos, na Grande São Paulo. A então menina de 4 anos, que adorava subir em árvores e dar estrelinhas na rua, foi aprovada e passou a lapidar seu talento em um projeto social, até se tornar atleta de alto rendimento da ginástica artística. Em 2021, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, Rebeca se consagrou como a primeira brasileira a conquistar uma medalha na modalidade. E não foi só uma, mas duas: levou o ouro no salto e a prata no solo, ao som do funk Baile de Favela (2016), de MC João. Ainda em 2021, no Mundial do esporte, ocorrido no Japão, ganhou o ouro no salto – conquista também inédita – e a prata nas barras assimétricas. Na edição do Mundial do ano passado, na Inglaterra, Rebeca terminou com a medalha de ouro no individual geral – mais uma vez, foi a estreia de uma brasileira no lugar mais alto do pódio nessa competição.
Mas nem tudo são saltos, giros e coreografias na vida da filha de Dona Rosa, vinda de uma família de seis irmãos. Prestes a completar 24 anos, em maio, Rebeca Andrade já rompeu o mesmo ligamento do joelho por três vezes, enfrentou cirurgias e recuperações dolorosas. Neste Depoimento, ela fala sobre suas inspirações, vitórias, desafios, representatividade feminina e negra, otimismo e objetivos. “Como mulher e mulher preta, poder ser referência para meninas e meninos, adolescentes, pretos e não pretos é algo muito grandioso”, destaca a atleta, que, em janeiro, participou da abertura do Sesc Verão 2023, ação que, anualmente, incentiva a prática de esporte e atividade física.
Comecei por meio de um projeto social, então entendo como isso é importante. No [Ginásio] Bonifácio Cardoso [em Guarulhos], foi a minha primeira oportunidade da vida e eu soube aproveitá-la. A ginástica veio como uma surpresa. Minha tia trabalhava no ginásio, onde fariam os testes. Fiz o meu primeiro e passei. Foi incrível: o ginásio parecia um parque de diversão. Acho que, se não tivesse sido por esse projeto, não teriam visto o meu potencial. Eu seria [apenas aquela] criança de 4 anos que fica dando estrelinha na rua, brincando, correndo. Eles [a equipe técnica] acreditaram que eu poderia ser algo além de um talento e, lá na frente, me tornar alguém dentro do esporte. Ter tido esses profissionais que lutaram por mim, trabalharam comigo e acreditaram não só na atleta, mas na pessoa que eu sou, fez toda a diferença. Estou com o Chico [o treinador Francisco Porath] desde os meus 7, 8 anos. E foi muito importante ter tido bons profissionais que me ajudaram a conquistar tudo o que eu gostaria dentro do esporte, para me tornar uma atleta de alto rendimento.
Eu me inspirei demais na Dai [Daiane dos Santos, ex-ginasta gaúcha, nove vezes medalha de ouro em campeonatos mundiais] para continuar na ginástica. Foi com quem me identifiquei, sendo mulher preta, explosiva, tendo aquela energia e alegria. Me sentia muito parecida com ela. É muito bom quando você tem referências. E eu, como mulher e mulher preta, poder ser referência para meninas e meninos, adolescentes, pretos e não pretos é algo muito grandioso. Quando faço eventos e as crianças contam que começaram a fazer ginástica depois que me viram, é muito legal. As pessoas veem aquela luz no fim do túnel. Me sinto muito lisonjeada, mas a melhor coisa que posso fazer é mostrar a minha ginástica e usar as minhas palavras. [Quero] ser esse tipo de inspiração, de uma pessoa lutadora, batalhadora, que acredita, que sabe que tem capacidade de alcançar o que quiser, independentemente do que as pessoas falem, da cor ou do que quer que seja. Quero que eles [os mais jovens] também tenham amor pelo esporte, comprometimento, responsabilidade, e tudo que o esporte traz – como educação, trabalho em equipe e uma outra família. Espero que eu possa ser um exemplo por muitos anos ainda.
A gente vai conquistando espaço aos poucos. Eu sou uma pessoa muito privilegiada. Não tive dificuldade por ser mulher nem por ser preta dentro do esporte, mas tive na parte financeira, quando era muito nova. A partir do momento em que entrei na seleção, tive todo o suporte, tanto do Flamengo, que é o meu clube, quanto da seleção e do Comitê Olímpico [Brasileiro]. Entendo como é difícil para uma pessoa preta alcançar o alto rendimento e se manter nele. Por isso, falo que sou muito privilegiada, porque as pessoas enxergaram que eu tinha algo a mais. E, com a educação que minha família me deu, fui conquistando as coisas por mérito meu. Aos poucos, fui sendo respeitada dentro do esporte. Minha mãe me fez uma mulher muito forte, então acho que, por ter sido ensinada assim, talvez eu não tenha deixado muitas coisas [ruins] acontecerem. Ou talvez as pessoas simplesmente me respeitaram por eu ser quem sou.
Se não fosse pela ginástica, eu não teria nada do que tenho hoje, tanto de oportunidades quanto de conhecimento, como viagens para outros países e educação. O esporte mudou a minha vida por completo. Lutei bastante, passei por muitas coisas, mas sempre acreditei que daria certo. Quando comecei na ginástica, era só uma diversão. Mas, a partir do momento em que precisei sair de casa e abrir mão de todo o meu porto seguro para seguir o meu sonho, entendi que o buraco era mais embaixo. Porém, criei outra família, tive outras vivências e experiências. E tudo isso valeu a pena. Eu sempre tive uma rede de apoio muito grande, e espero que elas [as ginastas mais jovens] tenham também. O conselho que eu posso dar aos que estão começando é que continuem acreditando, sabendo que o esporte educa, ensina a ter respeito, a ser uma pessoa mais responsável, mostra o mundo de uma maneira diferente. É algo muito grandioso e muito difícil. Mas qualquer coisa que você faça na vida, se tiver vontade, se quiser alcançar algo grande, terá que dar tudo de si, porque eu acho que é no difícil que vale a pena.
Para uma atleta de alto rendimento, passar por lesões é muito ruim. Tive vontade de desistir nas três vezes em que rompi o ligamento cruzado anterior do joelho direito. Quis voltar para casa, largar tudo. É aquele baque de saber que você estava tão bem, e aí acontece uma coisa ruim que vai te deixar um bom tempo longe. É algo muito difícil para a cabeça, mas o que me fez continuar foram minha família, meu treinador e minha vontade. E veio aquele pensamento: “Você ainda não alcançou tudo o que gostaria”. É algo que, de certa forma, me tornou a atleta e a pessoa que sou hoje – mais madura, mais forte, por dentro e por fora. As lesões fazem parte, tenho isso bem claro, porque a ginástica é um esporte difícil e arriscado. A gente desafia a física. Então, vai doer, vai ser difícil, mas a força que a gente tem dentro é muito maior, e nosso objetivo tem que ser o foco principal.
A gente vê como a ginástica está crescendo no Brasil. Incentivo e investimento nunca são demais. A gente ainda precisa, sim, ter mais esportes – não só a ginástica – em lugares públicos. Eu comecei a ginástica através de um projeto social. Se tivesse que pagar para estar no ginásio, não teria conseguido me manter. Então, quanto mais opções públicas houver, mais possibilidades a gente vai encontrar, porque muitas vezes a gente perde talentos no Brasil porque o pai ou a mãe não tem condições de manter o filho naquele esporte, por ser caro demais. E não é só pagar o lugar, mas a condução, ou não tem quem leve [e busque]. É tudo muito difícil, começa a acumular muita coisa. Então, quanto mais acessível for, mais fácil será. A gente teria muitos talentos.
Acho que a ginástica mudou muito com o tempo. Hoje, a gente pode falar, se abrir com o treinador. Eu tenho uma troca bem especial com o Chico. A gente está junto há muito tempo e sempre se respeitou demais. Eu tenho ele quase como um pai, ele me entende e sabe quando estou com algum problema. Essa liberdade de falar, de ser compreendida e saber que você pode se posicionar era algo que não havia antigamente. Isto faz toda a diferença dentro do ginásio: poder se comunicar com o seu treinador e criar confiança e comprometimento. A ginástica também mudou em relação a investimento e incentivo. Depois das Olimpíadas [de Tóquio, em 2021], a modalidade ficou ainda mais famosa no mundo todo, principalmente no Brasil. Vi várias reportagens de crianças querendo se inscrever para começar a fazer esse esporte e conhecê-lo [melhor] porque se apaixonaram por ele.
Não sei se tenho alguma [conquista] mais especial [que as outras], acho que cada momento e cada vitória foram muito especiais. Nos Jogos Olímpicos [de Tóquio], as medalhas foram desejadas por muitos anos, não só por mim ou pelo meu treinador, mas por todas as pessoas que realmente amam a ginástica, que entendem a dificuldade e a beleza desse esporte, e que esperavam ansiosas [por esse desempenho]. Então aquele ouro olímpico e aquela prata no individual geral foram muito grandes para mim. Mas a minha medalha [de prata no Mundial de Ginástica] em 2021 nas [barras] paralelas, também foi algo incrível. A paralela é o meu aparelho favorito, sou apaixonada por ela, então foi uma conquista pessoal. É algo que vai muito além, [que está no] meu coração. O ouro no salto também [foi extraordinário, em 2021, no Mundial]. E, depois de ter vindo de uma Olimpíada, conseguir mais uma medalha foi algo muito gratificante. Mostra que eu não tive nenhuma queda de treino nem de técnica. Além disso, não tenho como negar que o ouro no individual geral [no Mundial] em 2022 foi muito especial, uma medalha muito desejada. Sempre falo que tenho chances no individual geral, que é quando se juntam todos os aparelhos, e fiquei muito feliz de ter conseguido ultrapassar minhas barreiras, pensar rápido e fazer uma competição boa, com séries e apresentações bonitas, porque o resultado veio.
Tenho alguns campeonatos neste ano: um Brasileiro, uma Copa do Mundo, Jogos Pan-Americanos, um Mundial [entre setembro e outubro, na Bélgica]. Minha maior meta é estar feliz, saudável e com a mente tranquila. Isso é o principal, porque assim vou conseguir fazer as minhas melhores apresentações e sair com a certeza de que não poderia ter feito nada diferente. Este é o meu maior foco: fazer a série e acertar; e, se acontecer de errar, saber que eu não poderia ter feito nada diferente. Errar também faz parte do esporte. O Mundial é bem importante e vale a vaga olímpica. Mas, antes dele, há outras competições. Então, é um passinho de cada vez. Aos poucos, vamos alcançando nossos objetivos, e eu não estou sozinha. Meu treinador e as meninas da minha equipe têm o mesmo objetivo: todo mundo quer alcançar os melhores resultados, e a gente vai trabalhando juntos. Quero muito que a gente consiga se classificar como equipe [no Mundial]. A próxima Olimpíada [em 2024, em Paris] é muito esperada. Nossa vaga por equipe é uma meta a ser alcançada.
Eu era muito nova [quando comecei], mas minha mãe sabia que eu gostava daquilo, então entendeu que era importante para mim. O maior desafio de mudar de cidade [de Guarulhos para Curitiba e, depois, para o Rio de Janeiro] foi a distância da família. [Mesmo] quando eu morava em Guarulhos, já não ficava todos os dias em casa. Mas aos finais de semana eu ia, e sempre fui muito apegada aos meus irmãos, à minha mãe. Quando mudei de cidade, sentia muita saudade. Acho que esse foi o maior desafio, mas minha mãe sempre se fez muito presente, conversamos sempre. Se acontecesse alguma coisa e eu falasse para ela ir até Curitiba ou o Rio, ela comprava passagem na hora para me acolher e resolver o que precisasse. Eu não vou com tanta frequência para casa, mas eles entendem, sabem que é o meu trabalho e o respeitam demais. E, sempre que a gente está junto, é maravilhoso. Já fiquei muito tempo sem ver minha família por conta da ginástica, mas não me arrependo, porque é o meu trabalho e eu queria muito ter as minhas [próprias] conquistas e realizações. Fico muito feliz porque eles sempre me apoiaram demais nisso. Agora, vendo todos os meus resultados, a gente entende que valeu a pena. E ver o orgulho deles [familiares], o brilho nos olhos, quando falam sobre mim ou quando eu falo sobre eles, é algo que dinheiro nenhum compra. Se não fosse por eles, eu não estaria aqui hoje.
Sempre falo sobre acreditar [apesar das dificuldades], saber que é possível, que a gente vai escutar muitos “nãos” na vida. Muita gente quis me aposentar depois das lesões [no joelho]. Se eu tivesse parado de treinar, não teria conquistado minhas medalhas, não teria tido esse orgulho de ter pódios olímpicos e mundiais. Então é [preciso] acreditar no processo, nos profissionais que estão com você. Tento mostrar o que vivi da melhor maneira possível, [porque] tudo depende de como você enxerga as coisas. Com as minhas lesões, eu poderia ter desistido, ficado lá embaixo, mas preferi me levantar, me reerguer e ser positiva. O esporte é difícil, a vida é difícil, mas os resultados, quando acontecem, valem muito a pena. Sou grata por tudo que passei, por todas as cirurgias e dificuldades, porque as minhas alegrias são imensuráveis. Me mantenho otimista porque sei que tenho objetivos a alcançar. Tenho todo um planejamento e acredito em ir um dia de cada vez. Sei que as coisas não acontecem de uma hora para outra, então a gente precisa ir com calma para chegar ao resultado final. A cada dia, temos a oportunidade de fazer algo diferente, para nos deixar ainda melhor. Levar as coisas com leveza, calma e alegria faz toda a diferença. Isso se reflete também nos meus resultados, as pessoas me veem feliz, tranquila, porque é assim que procuro viver a vida. E não é que eu não tenha problemas, todo mundo tem, mas tudo depende de como você vai enxergá-los. Se você ficar só vendo as coisas ruins, não conseguirá encontrar as soluções. Então procuro me acalmar e pensar em como posso resolver [os problemas]. A partir do momento em que tenho a resposta, por que vou me manter negativa? Então coloco um sorriso no rosto e acredito que vai dar certo, que vou conseguir passar por aquilo. Tenho meus objetivos e sei que tenho capacidade. Sei que não vai ser fácil, mas acredito que é possível. É isto que me faz ser tão otimista: acreditar que tudo vai dar certo e ter uma cabeça forte para trabalhar todos os dias, pensando sempre em fazer um pouquinho melhor para alcançar meus objetivos. Acho que as pessoas têm que levar a vida um pouco mais assim [com positividade], e as coisas começam a se encaixar. Tudo pode acontecer, basta você querer e trabalhar muito.
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