A permanente ousadia e irreverência que atravessaram vida e arte da camaleônica Rita Lee
Por Manuela Ferreira
Leia a edição de julho/23 da Revista E na íntegra
Ao subir ao palco da lendária terceira edição do Festival de Música Popular Brasileira de 1967, Rita Lee (1947-2023) tinha um pequeno coração desenhado na maçã esquerda do rosto. A singela pintura, um dos inúmeros traços de autenticidade visual da artista, foi uma ideia da própria Rita. Estava acompanhada pelo cantor e compositor Gilberto Gil e os músicos Sérgio e Arnaldo Baptista, os irmãos com quem ela formava, há cerca de um ano, o trio Os Mutantes. Sorridente e tocando pratos, a jovem canalizou as atenções da plateia do antigo Teatro Record, na região central da capital paulista. Enquanto fazia os vocais de apoio da música de Gil, Domingo no Parque, Rita Lee teve certeza: nascera para estar em cena. De tão impactante, o festival está nas origens do movimento Tropicália e nas bases da moderna MPB. A ocasião seria para sempre lembrada, também, pela aparição desta estrela irrefreável, multifacetada e protagonista de transformações musicais e de comportamento inestimáveis, que sonhava não com a fama, mas em ser imortal.
“Os Mutantes foram uma revolução, tanto que, até hoje, causam muita comoção não só com o público, mas com a classe artística — uma revolução eterna, sem fim. Para quem achava que aquela revolução só tinha a ver com a química dela com Arnaldo e o Sérgio, Rita Lee foi mostrando, depois, o quanto ela era uma mutante na sua essência. Porque ela conseguiu mudar várias vezes na vida”, observa a cantora e compositora Zélia Duncan. A intérprete — que assumiu os vocais de Os Mutantes entre 2006 e 2008, no retorno do grupo — enaltece os caminhos desbravados pela autora de clássicos como Ovelha Negra (1975) e Doce Vampiro (1979). “Rita sempre lutou pelas mulheres. Ela sempre foi uma luz, uma liderança feminista da música, com seu jeito de compor, de se impor, sem nunca baixar a cabeça para nada. Chegou a ser presa, perseguida, censurada, e nada segurou essa mulher”, complementa a cantora.
Paulistana com orgulho, Rita Lee Jones de Carvalho era descendente de norte-americanos e italianos. Cresceu em um lar católico — afirmava que a mãe era “mais católica que o Papa”. Fez aulas de piano e com as irmãs, Mary e Virgínia, gostava de encenar peças no porão do sobrado da família na Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo. As três deram o nome de Las Hermanas Sisters para o grupinho de teatro improvisado. “O script variava conforme nossas reivindicações […] Subíamos no palquinho encenando As magrelas felizes, exigindo o fim de tomar óleo de fígado de bacalhau todas as manhãs, quando o Biotônico Fontoura era muito mais gostoso como ativador de apetite infantil”, recordou a artista no livro Rita Lee: uma autobiografia (Globo Livros, 2016). Adolescente, teve seu primeiro conjunto musical, as Teenage Singers, com colegas do bairro. Aos 19 anos, fundou Os Mutantes. A saída do grupo, em 1972, foi polêmica — a intérprete era casada com Arnaldo Baptista e a separação do casal motivou, também, o rompimento musical.
O episódio foi narrado em Rita Lee: uma autobiografia com a prosa profundamente franca e irreverente típica da cantora. “Minha saída do grupo aconteceu bem nos moldes de ‘o noivo é o último a saber’, no caso, a noiva. Depois de passar o dia fora, chego ao ensaio e me deparo com um clima tenso/denso. Era um tal de um desviar a cara pra lá, o outro olhar para o teto, firular instrumento e coisa e tal. Até que Arnaldo quebra o gelo, toma a palavra e me comunica, não nessas palavras, mas o sentido era o mesmo, que naquele velório o defunto era eu. ‘A gente resolveu que a partir de agora você está fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na linha progressiva-virtuosa e você não tem calibre como instrumentista.’ Uma escarrada na cara seria menos humilhante. Em vez de me atirar de joelhos chorando e pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a mala, peguei a Danny (a cachorra) e adiós. No meio da estradinha da Cantareira, parei no acostamento e chorei, gritei, descabelei, xinguei feito louca abraçada a Danny, que colaborava com uivos e latidos”, relatou na publicação.
Antes de deixar Os Mutantes, Rita Lee lançou o icônico Build Up (1970), seu primeiro álbum solo. Em 1972, gravou o disco Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida. Já em 1973, formou com a cantora, compositora e guitarrista Lúcia Turnbull a dupla de folk rock As Cilibrinas do Éden. No mesmo ano, Rita Lee montou a banda Tutti Frutti — um fenômeno comercial e artístico que segue influenciando gerações. “O período mais importante, ao menos em termos de consolidação de um caminho, foi aquele com a banda Tutti Frutti. Em primeiro lugar, por ter sido um claro momento de ruptura com a tradição da MPB, que permitiu o desenvolvimento de um trabalho menos preso aos paradigmas de um certo bom-mocismo, de um certo ‘bom gosto universitário’ e das pretensões nacionalistas daquela produção. Não se trata aqui de menosprezar a MPB, mas de apontar para os evidentes sinais de esgotamento que o gênero apresentava na segunda metade dos anos 1970, momento de florescimento do trabalho de Rita Lee & Tutti Frutti”, revela o professor e pesquisador Eduardo Vicente.
“Vejo o trabalho como uma ruptura corajosa e problemática naquele momento. O que talvez ajude a explicar os problemas que surgem com a [gravadora] Philips e a saída da empresa. Olhando em retrospectiva, foi o caminho que permitiu a Rita abordar um público mais amplo, embora me pareça complicado afirmar hoje, diante do sucesso obtido pelo álbum Fruto Proibido (Som Livre, 1975), que o trabalho buscava o sucesso comercial”, afirma o docente. Segundo Vicente, não resta dúvida de que Fruto Proibido rompe a barreira do público tradicional da MPB ao levar um discurso poético e musical bem diferente do “tradicional romântico” a um público jovem que, certamente, era bem distinto daquele que frequentou os festivais da canção da década anterior. “Finalmente, foi o grande momento de afirmação de um rock nacional que, naquele momento, limitava-se em termos de artistas de maior projeção, além de Rita & Tutti Frutti, Raul Seixas (1945-1989) e, ocasionalmente, Erasmo Carlos (1941-2022). Ou seja, foram os nomes que mantiveram a chama acesa antes da grande onda roqueira dos anos 1980”, esmiúça.
Com o fim do Tutti Frutti, em 1978, Rita Lee mergulhou na parceria musical com o multi-instrumentalista e compositor Roberto de Carvalho — os artistas estavam casados desde 1976 e assim permaneceram até a morte da cantora, no dia 8 de maio deste ano, em consequência de um câncer pulmonar. Tiveram três filhos: Beto, João e Antônio. Juntos, Rita e Roberto atingiram ápices criativos que resultaram em diversos sucessos, entre os quais Mania de Você (1979), Baila Comigo (1980), Cor de Rosa Choque (1982), Desculpe o Auê (1982) e Pega Rapaz (1987). Ao longo da carreira, a artista emplacou mais de 70 canções em trilhas sonoras de novelas da TV Globo. “Todas as épocas da Rita são incríveis, cheias de ousadias, inovações e sempre apontando caminhos iluminados para a gente. Mas, a fase dela com o Roberto de Carvalho é a minha preferida: cada música mais linda que a outra, com letras, melodias e arranjos sensacionais. Fizeram juntos verdadeiras obras–primas”, defende a cantora e compositora Marina Lima.
O período de intensa popularidade foi marcado, também, pela censura. As músicas Papai me Empresta o Carro (1979) e Lança Perfume (1980), por exemplo, foram classificadas como impróprias pela Divisão de Censura em Diversões Públicas da época. A cada veto, Rita e Roberto dobravam a aposta com letras que exaltavam o amor que viviam, o corpo e a sexualidade, sem timidez. “O recurso básico do conservadorismo político e econômico é tradicionalmente o de se aproximar do conservadorismo moral. Isso era tão presente na ditadura cívico-militar de 1964-1985 como ainda é nas manifestações mais evidentes da extrema direita atual. Assim, o enfrentamento à ditadura de 1964 não se dava somente no campo político, já que a estrutura repressiva se estendia à moral sexual, relações familiares, papel da mulher na sociedade, homossexualidade etc. De modo que, também nesse campo, era preciso enfrentar o aparato repressivo de Estado, Igreja e Família”, detalha o professor Eduardo Vicente. “Os inúmeros problemas enfrentados por Rita em relação à censura e às autoridades policiais atestam as dimensões desse confronto, e o perigo que o poder conservador reconheceu no discurso e no exemplo da artista”, acrescenta.
O legado da cantora se estendeu para além da música — Rita Lee foi uma dedicada ativista da causa animal e do estilo de vida vegano. Explorou as artes plásticas, foi apresentadora de programa de entrevistas, atuou em teatro, cinema e televisão e é autora de seis livros infantis, duas autobiografias e o livro de microcontos Storynhas (Companhia das Letras, 2013). A publicação — uma reunião de pequenas histórias postadas pela cantora em sua conta no Twitter — foi ilustrada pela cartunista Laerte Coutinho. Entre as memórias que guarda da época em que desenvolveram o trabalho juntas, Laerte recorda. “Eu fiquei empolgada, nervosa também, com medo de dar bola fora ou parecer — parecer o quê? Tivemos uns encontros ao vivo, na Companhia das Letras, e percebi com muita clareza que se tratava de alguém próxima, ou aproximabilíssima. O jeito dela de tocar nos assuntos, como se já tivéssemos falado daquilo mil vezes, foi de uma beleza para o que eu tinha a fazer”, lembra a cartunista.
A cantora e compositora Anelis Assumpção, por sua vez, exalta o legado deixado pela cantora para as mulheres artistas de antes, de agora e as que virão. “Rita nos esclarece a coragem de sermos com nossas vozes pequenas, imensas ou medianas. Nos encoraja na escrita, na performance, na postura política, ambiental, social. Na busca por liberdade de expressão de corpos e ideais sexuais, de relação, de prazer, de desejos e de outros encontros. Ela rompe muitas bolhas e isso só potencializa um campo tão criativo, onde mulheres são capazes, mas sofrem o desestímulo do mercado, sempre engessadas em formatos rasos. Rita Lee nos liberta.”
Opinião semelhante à da cantora, compositora e empresária Paula Lima. “Acredito que o recado [de Rita Lee] seja: ser, estar, viver. Aconteça, resista, lute pelos desejos e pela liberdade. Ame. Seja amada. Tenha amizade, cumplicidade, um pouco de loucura [ela insistia nos últimos discursos para que fosse realmente uma loucura sadia]. Rita ultrapassou todas as expectativas e viveu como acreditou. Fez uma vida, que é apenas uma, valer muito a pena para ela, para os dela e para nós.”
Queria dar beijinhos e carinhos sem ter fim nessa moçada e dizer a ela que a barra é pesada mesmo, mas que a juventude está a seu favor e, de repente, a maré de tempestade muda, fazendo o barquinho seguir até sua ilha deserta e ensolarada de amor. Diria também para não planejarem nada a tão longo prazo, que a frustração pode assombrar; o que não significa não ter sonhos, apenas que eles não caem do céu.
Diria também um monte de clichê: que vale a pena estudar mais, pesquisar mais, ler mais. Diria que não é sinal de saúde estar bem-adaptado a uma sociedade doente, que o que é normal para uma aranha é o caos para uma mosca, que uma coroa não é nada além de um chapéu que deixa entrar água, que todo dia o mundo se afoga no caos e vai ser difícil achar um lugar para observar o fim dos tempos de camarote.
Meninada, sintam-se beijados pela vovó Rita.
Trecho de Rita Lee: Outra autobiografia (Globo Livros, 2023)
Festival Sesc Thermas do Rockcelebra o gênero musical que definiu a trajetória e o legado de Rita Lee
Pouco tempo após o lançamento do disco Rita Lee (1993), a artista fez uma passagem marcante pelo Sesc Interlagos, na zona sul paulistana. Rita voltava-se, outra vez, para o estilo que a consagrou, após um hiato de três anos sem gravar e uma curta separação musical com Roberto de Carvalho. Em entrevista, antes do show, a roqueira se definiu como “uma dinossaura em extinção, porém feliz”. E deixou escapar uma travessura à la Rita Lee: andando pela área verde do espaço, colheu flores escondida. “Peguei uns ‘geraniozinhos’ escondidos. Mas eu ganhei!”, falou, aos risos.
A partir de 13/7, Dia Mundial do Rock, os fãs da artista e de outros expoentes do gênero podem celebrar juntos o Festival Sesc Thermas do Rock, que chega à 13ª edição oferecendo uma experiência imersiva no bosque do Sesc Thermas de Presidente Prudente, no oeste do Estado de São Paulo. O evento pretende unir gerações por meio da música e celebrar diversas vertentes do ritmo. Na programação, shows musicais, bate-papos com artistas, oficinas, ateliês e ações lúdicas. Confira alguns destaques:
THERMAS DE PRESIDENTE PRUDENTE
Festival Sesc Thermas do Rock
Dias 13, 14 e 15/7.
Sepultura
Dia 13/7, quinta, às 21h.
Black Pantera
Dia 14/7, sexta, às 20h30.
Fresno
Dia 14/7, sexta, às 22h.
Geleia de Roquepepê
Dia 15/7, sábado, às 20h30.
Zélia Duncan (show em homenagem a Rita Lee)
Dia 15/7, sábado, às 22h.
(Antes dos shows, e nos intervalos, discotecagem com o coletivo Todas Podem Mixar)
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