Leia a edição de julho/22 da Revista E na íntegra
Antes de inventar a roda, o ser humano inventou o jogo, ferramenta presente em diferentes culturas do mundo e que atravessa eras e civilizações. Ousa-se até mesmo afirmar que o jogo é anterior à cultura e que a ciência, a poesia, a filosofia e as artes foram e são por ele nutridas, segundo o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) em Homo Ludens, obra de 1943 que é referência sobre o tema. Atividade voluntária, temporária (com começo e fim), que requer imaginação, possui regras e pode ser repetida inúmeras vezes, o ato de jogar ainda perpassa todas as fases da vida, da infância à velhice, estimulando novos aprendizados, criatividade e trocas.
“Os jogos acompanham a história da humanidade e, quando pegamos uma linha do tempo, um dos mais antigos com o qual temos contato é o Mancala, que tem mais de sete mil anos segundo arqueólogos. Jogado em todo o continente africano – alguns historiadores apontam sua origem no Egito –, ele simula o plantio e a colheita e consiste na movimentação de sementes de baobá em diferentes buracos cavados na terra”, conta Thiago Attié, idealizador do Caravana Lúdica de Jogos do Mundo, projeto que desde 2013 leva a espaços públicos a oportunidade de pessoas de todas as idades terem contato com jogos dos cinco continentes e de todos os tempos (de 2600 a.C. até jogos modernos).
Tendo como professor e parceiro na criação do Caravana o pesquisador Ivan Peña Johnson, mestre em ciências dos jogos pela Universidade de Paris XII, Attié explica que de 1500 a.C. para cá, surge uma série de jogos que, posteriormente, darão origem aos já conhecidos damas, xadrez e outros jogos de captura. “Enquanto a história caminha, também vão se desenvolvendo jogos de destreza, como o bilhar, jogos de arremesso, e outros que representam guerras. Até chegarmos nos dias de hoje, em que vamos falar de jogos cooperativos”, acrescenta.
Se você parar para pensar, é fantástico constatar que atualmente jogamos algo criado há milhares de anos, numa época em que sequer havia eletricidade ou internet. O que hoje sabemos jogar foi passado de geração a geração pela oralidade ou descoberto como artefatos em sítios arqueológicos. “Quando se estuda a história de um determinado jogo, é muito bacana ver que ele pode ter origem num jogo romano, por exemplo, lá atrás, e que foi se desenvolvendo e mudando com o tempo e com as culturas. São as gerações que transmitem isso. Essa é uma cultura de jogo”, reflete o arte-educador Alberto Duvivier Tembo, um dos fundadores e membro do Zebra5, coletivo de educadores composto ainda por Auber Bettinelli, Stella Ramos e Thelma Azevedo Lobel.
Tendo como pilar a tríade jogo, arte e educação, o Zebra5 já desenvolveu jogos de mediação em ações educativas e exposições de arte. Mais recentemente, o coletivo criou o Abstratus, que ganhou o Prêmio Ludopédia 2018 – Designer Nacional. Nesse jogo de mesa, os participantes representam tridimensionalmente palavras a partir de um kit de peças com formas geométricas. “Imaginação, comunicação e senso de composição são desafiados nessa experiência lúdica onde não há certo ou errado”, explica Tembo.
Produzido e distribuído pela Ludens Spirit, o Abstratus teve, segundo o desenvolvedor de jogos, uma ótima resposta do público e, por isso, deve ganhar, ainda neste segundo semestre, uma nova versão, o Abstratus Pop – com peças novas e palavras referentes ao universo pop, como celebridade, paparazzi e disputa –, além de uma extensão focada nas artes visuais. “Lançaremos um novo deck de cartas chamado Abstratus Artes Visuais, que terão títulos de obras da arte contemporânea brasileira. Por exemplo, A Mesma e a Outra, de Regina Silveira, e Já Estava Assim Quando Eu Cheguei, de Carlito Carvalhosa”, adianta o arte-educador, que realizará o curso Criatório de Jogos: Processos de Criação, no Sesc Belenzinho, neste mês (Leia o boxe Festival de Aprender).
Assim como o Abstratus, na última década, diversos jogos autorais vêm sendo produzidos, grande parte, de maneira independente. Nesse cenário, questões em pauta na contemporaneidade norteiam as criações de jogos de carta, tabuleiro, entre outros tipos. Temas como feminismo, racismo, diversidade, pensamento decolonial, consciência negra e democracia ganham a rodada.
Entre esses está o Afro-Históricos, jogo de cartas que se propõe ampliar o conhecimento da história de personalidades negras que contribuíram para a história do país, e que foi criado pela designer Polliana Silva, como resultado do trabalho de conclusão de curso de design da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA/UFBA). Outro exemplo são os jogos de tabuleiro Enfrentando seus medos e Lidando com as emoções, da Conexões, criados pela educadora parental Silvia Carvalho, para ensinar as crianças a falarem e refletirem sobre suas emoções.
Nessa linha, o jogo de memória Memorelas nasceu em 2018, de uma pergunta feita pela historiadora e professora Joana Schossler a amigos e alunos do Ensino Fundamental 2. “Quem é a mulher brasileira que você admira ou pensa que merece ser lembrada? Percebi que não tínhamos essa resposta na ponta da língua e pensei: a gente precisa de algum material que nos ajude a fazer essa reflexão. Foi aí que escolhi esse tema e logo me veio à cabeça o jogo de memória, uma vez que a memória é um dos suportes da história,” conta.
Composto por 15 pares de cartas com o desenho de brasileiras que marcaram a história, como a escritora Carolina Maria de Jesus, a pintora Tarsila do Amaral e a jogadora de futebol Marta, o Memorelas apresenta aos brincantes novos rostos de diferentes épocas e áreas de atuação. Soma-se ainda um par de cartas em branco para ser ilustrado pelos próprios jogadores. “Assim, poderão incluir desde outras personagens da história ou até mesmo membros da família, como a mãe ou a avó, por exemplo”.
Aficionada por jogos analógicos desde a infância, quando morou na cidade de Lajeado (RS), Joana ainda guarda seu favorito, um tabuleiro de ludo, e segue acreditando na relação afetiva que criamos com os jogos, bem como no potencial de aprendizado e troca ao se jogar. Aliás, essa é a resposta que obtém tanto de quem leva seus jogos para casa ou para a sala de aula. Além disso, a historiadora e criadora da Editora Cecerelê – que produz e vende o Memorelas e o jogo de quebra-cabeças Revolucionárias, que traz lutas sociais lideradas por mulheres como tema –, observa como os jogos também promovem um sentimento de pertencimento.
“O Memorelas traz esse repertório para as crianças tanto que algumas falam que determinada personagem parece com alguma tia ou familiar; outras se identificam com a ilustração e dizem: ‘ela tem o cabelo enrolado, parece com o meu’; ou querem complementar o jogo com o desenho de jovens mulheres da atualidade, como Malala [paquistanesa de 24 anos, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz]”, compartilha Joana que, atualmente, desenvolve um jogo de tabuleiro voltado à questão ambiental e que terá como protagonista uma tartaruga.
Ainda que seja uma consequência natural, para o arte-educador Alberto Duvivier Tembo, o jogo não deve se preocupar em ser pedagógico. “A meu ver, se o jogo for bom, ele já é pedagógico porque qualquer jogo trabalha a partir do desafio, e você tem aprendizado quando tem desafio. A questão é saber adequá-lo a cada faixa etária”, destaca. Afinal, complementa Tembo, “jogar já é aprender, é criar sinapses, é fazer relações, buscar soluções, gerar autonomia e promover protagonismo.”
A cultura do jogo atravessa idades e, na maior parte das vezes, se torna uma herança transmitida de pais para filhos, de avós para netos e assim por diante. “Eu aprendi a jogar buraco com a minha avó, mas, no começo, eu só ficava olhando de fora para tentar entender. Até que, um dia, ela achou que eu era capaz de aprender e começou a jogar comigo. Ou seja, você vê o jogo sendo transmitido numa família porque ele é uma ferramenta que engloba todas as idades”, observa Alberto Duvivier Tembo.
Essa questão também fica evidente para Thiago Attié, do Caravana Lúdica. “A gente tenta criar um ambiente onde a pessoa que está caminhando ou simplesmente atravessando, como uma praça, possa parar e conhecer novos jogos. Vemos pessoas de todas as idades. E nossa ideia é que essa ação seja intergeracional e que abranja diferentes camadas sociais”, conta Attié, que leva aos espaços públicos mais de 40 variações de jogos produzidos artesanalmente a partir de materiais recicláveis.
Mesmo que estejamos vivendo um tempo em que jogos digitais conquistam cada vez mais entusiastas, os dispositivos analógicos permanecem vivos, cativando brincantes e estimulando criatividade e interações. Dessa forma, mudam-se as peças, os tabuleiros, as cartas, mas não a vontade de jogar. “Costumo dizer que quando uma pessoa afirma não gostar de jogo, talvez seja porque ela ainda não tenha encontrado um que se encaixe com ela. E precisamos lembrar que existem muitas famílias de jogos”, arremata Tembo. Você já encontrou o seu?
(Por Maria Júlia Lledó)
Com objetivo de traduzir informações de interesse público decisivas e promover espaços de construção democrática em tempos de intolerância política, a Fast Food da Política, organização da sociedade civil criada e administrada por mulheres, busca democratizar a educação política com o uso de jogos. São mais de 20 jogos disponíveis para download gratuito no site da organização. Ao promover uma educação política de forma lúdica, o Fast Food da Política provê ao público ferramentas para compreensão das regras que ditam o funcionamento das instituições públicas e que fomentam uma participação cidadã.
Deixe a sua criatividade correr solta na quinta edição do FestA! – Festival de Aprender, que acontece em 40 unidades do Sesc São Paulo e no ambiente digital, de 9 a 17 de julho. Na programação, mais de 350 atividades gratuitas, entre cursos, oficinas, palestras, encontros, vivências e demonstrações em artes visuais e tecnologias. Gravura, fotografia, artesanato, marcenaria, jogos, design gráfico, fabricação digital e eletrônica criativa são algumas das linguagens presentes no FestA!, uma celebração ao fazer criativo e à experimentação.
Para o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, atividades de experimentação nas artes são fundamentais para facilitar a aproximação de variados públicos ao universo artístico, permitindo criar momentos de lazer e de aprendizagem. “A rede de unidades do Sesc constitui, nesse sentido, um privilegiado sistema para o oferecimento de cursos e oficinas em artes e tecnologias, favorecendo não apenas o acesso do público, mas a apresentação e circulação de distintos profissionais do ensino das artes, em ações marcadas pela cooperação e compartilhamento de saberes”, complementa.
Entre alguns destaques dessa edição estão a participação de profissionais como a artista visual tecelã e ambientalista Nara Guinchon, que vai mostrar, no Sesc Ipiranga, seu trabalho com o reuso de redes de pesca de poliamida para criação de peças de design, e o quadrinista e ilustrador Orlandeli, que vai criar uma HQ ao vivo com a participação do público direto pelo canal do YouTube do Sesc Bauru. O público também terá a oportunidade de entrar em contato com as mais diferentes técnicas e habilidades, como fabricar um bongô cajón, aprender técnicas de cerâmica indígena, desenvolver jogos de carta, tabuleiro e digital, construir carrinhos de rolimã e muito mais.
Acesse a programação completa do FestA!. Confira alguns destaques:
SESC AVENIDA PAULISTA
Ocupação – Passatempos para aprender a perder tempo
Num mundo obcecado pela produtividade, o que aconteceria se a gente aprendesse a perder tempo? Contemplar sem pressa, criar sem compromisso e aproveitar o momento são habilidades em extinção. Curiosamente, brincar é uma atividade que resgata tudo isso. Com isso em mente, as artistas Dani Shirozono e Marcela Monteiro ocupam o Sesc Avenida Paulista com a instalação Passatempos para aprender a perder tempo, um projeto que usa atividades amplamente conhecidas, a exemplo de sudoku, caça-palavras, jogo dos sete erros etc., como ponto de partida para propor uma reflexão sobre a nossa relação com o tempo. Ao subverter as regras dessas atividades, criando outras propostas lúdicas, o público é convidado a entrar num mundo sem tanto compromisso com a lógica e com a produtividade. (De 9 a 31/07, terças a domingos, das 10h às 22h).
SESC BELENZINHO
Curso – Criatório de jogos: processos de criação
Neste curso teórico-prático composto por três encontros, o coletivo Zebra5 busca explorar, a cada atividade, uma categoria específica de jogos – construção, cartas e tabuleiro –, permitindo que o público experimente mecânicas específicas, bem como características fundamentais do fenômeno lúdico: acaso, combinação, abstração, representação, ordem, repetição, por meio de exercícios de criação de regras, materiais e mecânicas de jogos. O curso utiliza exercícios estéticos de criação artística e propicia práticas rápidas de criação de jogos. No entanto, vale destacar que este curso não visa à criação de um jogo complexo e fechado ao final pelos participantes, mas à experimentação de possibilidades múltiplas para criação de jogos. (De 12 a 14/07, terça a quinta, das 19h às 22h. Inscrições a partir das 15h do dia 6/07. Voltado para interessados acima de 14 anos, sem necessidade de conhecimento específico em arte ou jogo).
SESC SANTOS
Oficina – Jogos para ampliar a percepção do mundo
Construir, transformar e jogar jogos de tabuleiro nos desafia a ampliar a percepção do mundo ao nosso redor e nos faz refletir sobre como materiais simples podem oferecer oportunidades de desenvolver e imaginar relações mais solidárias e colaborativas. Tendo como base essa prática, os participantes desse curso ministrado pelo arte-educador e designer de brinquedos Renato Barbosa vão poder conhecer e jogar uma série de jogos criados a partir de materiais reutilizáveis. (Dias 9 e 10/07, sábado e domingo, das 15h às 18h. A partir de 4 anos).
Disponível gratuitamente ao público do Sesc São Paulo, e para download na plataforma Sesc Digital, o Almanaque FestA!, criado em 2021, é uma publicação composta por diversos conteúdos, jogos e proposições lúdicas com o objetivo de inspirar experimentações e fazeres das artes visuais, tecnologias e artes aplicadas. Já em 2022, investigando as visualidades da cultura popular, foi desenvolvido o material educativo Que festa, criado pela equipe do Sesc em parceria com o coletivo Micrópolis, que atua nos cruzamentos entre espaço, design e educação, e é composto pelos arquitetos Vitor Lagoeiro, Felipe Carnevalli e Marcela Rosenbur.
A EDIÇÃO DE JULHO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, quando o Sesc São Paulo promove mais uma edição do FestA! – Festival de Aprender, celebramos a ludicidade dos jogos analógicos e revelamos que, apesar do surgimento de novas tecnologias, eles atravessam gerações, atualizando-se em temas e formatos, incorporando narrativas inovadoras e estimulando o aprendizado. Nossa reportagem principal prova que o jogar, ato que perpassa todas as fases da vida, compõe uma importante parte da existência humana e contribui para o exercício da socialização e o amadurecimento de nossa criatividade.
Além dessa reportagem, a Revista E de julho traz outros conteúdos: um texto que convida o leitor a uma imersão na Trilha do Sentir, passeio sensorial e acessível em meio à restinga, na Reserva Natural Sesc Bertioga; uma entrevista com o professor e pesquisador Fernando José de Almeida sobre caminhos para a educação na era digital; um depoimento do diretor mineiro Gabriel Villela sobre dramaturgia, direção e seus 30 anos de casamento com o teatro; um passeio fotográfico pelas obras da exposição, em cartaz no Sesc Bom Retiro, que celebra as experimentações do artista Penna Prearo; um perfil de Yara Bernette (1920-2002), um dos grandes nomes brasileiros do piano no século XX; um encontro com Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital que defende não haver mais divisão entre vida on e offline; um roteiro por 5 passeios divertidos e educativos nas unidades do Sesc SP para fazer com a criançada no mês das férias; quatro poesias inéditas assinadas assinadas pelo artista Ricardo Aleixo; e dois artigos, assinados por Sueli Angelo Furlan e Thaise Costa Guzzatti, que refletem sobre o Turismo de Base Comunitária.
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