Fotógrafo e pesquisador em artes visuais, Tuca Vieira revela os significados e impactos das imagens que registram a arquitetura das hipercidades
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POR MARIA JULIA LLEDÓ
Empenas, viadutos, arranha–céus, calçadas e sobrados são capturados pelas lentes do fotógrafo Tuca Vieira, para quem a silhueta de concreto de uma metrópole é a chave para se entender o mundo onde vivemos. “Quando eu falo em arquitetura, não estou falando de prédios desenhados por grandes profissionais, estou falando da cidade como um grande laboratório humano de decisões, construções, falhas e desejos. Isso tudo é a arquitetura que me interessa”, explica.
Fotógrafo profissional desde 1991, Tuca trabalhou no jornal Folha de S. Paulo, entre 2002 e 2009, no qual publicou Paraisópolis (2004) – foto reconhecida internacionalmente –, que retrata uma tênue fronteira entre a segunda maior favela de São Paulo e um condomínio de luxo no bairro do Morumbi. Ao evidenciar as discrepâncias sociais das metrópoles, o artista provoca a reflexão sobre as miopias dessa realidade desafiadora.
Autor de obras como Salto no escuro (N-1 Edições, 2020) e Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo e Arredores (Casa da Imagem/Museu da Cidade de São Paulo, 2020), pela qual recebeu o prêmio Jabuti, em 2021 –, Tuca aponta sua câmera para as hipercidades. Estes gigantescos centros urbanos, habitados por mais de 10 milhões de pessoas, também são tema do doutorado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), que levou o artista a uma bolsa de pesquisa na Universidade de Lyon Saint-Étienne, na França. Neste Encontros, Tuca explica o que são as hipercidades, reflete sobre o uso de novas tecnologias, aborda a ética no fotojornalismo e discorre sobre a postura crítica de quem faz e daquele que observa uma fotografia.
Sempre me surpreendi com a cidade de São Paulo, com seu potencial de produzir imagens, e acho que ela não é uma cidade muito bem fotografada. Ela é mal conhecida por nós mesmos [moradores]. Apesar de paulistano, sempre estranhei São Paulo e nunca me acostumei com o tamanho e as potencialidades de um lugar como esse. Ela sempre foi um ente gigante e estranho ao meu redor, e esse estranhamento é importante para o artista. Então, me interessei por cidades semelhantes, essas cidades gigantes que existem pelo mundo. Há estudos que explicam que uma cidade, quando ultrapassa 10 milhões de habitantes, perde a sua unidade inicial. A distância entre o centro e a periferia ultrapassa o razoável e ela passa a ser um aglomerado disforme. A gente deveria buscar outra palavra para definir esse tipo de aglomeração –, daí hipercidades: a cidade além da cidade. Há várias pelo mundo e eu me propus a conhecer cerca de 30, numa pesquisa fotográfica que está ligada ao meu projeto de doutorado. A fotografia é, no fundo, um pretexto para conhecer lugares, e eu sempre tive curiosidade de visitar essas cidades que estão moldando o futuro do mundo. Conforme vou visitando, vou escrevendo e fotografando.
A fotografia Paraisópolis toca nesse assunto que é cada vez mais importante: a desigualdade social. A gente fala em ricos e pobres como duas realidades que estão distantes, e é muito difícil fazer uma imagem que dê conta desses dois extremos, separados por barreiras muitas vezes invisíveis. Então, a foto é “feliz” nesse sentido. Há, literalmente, um muro ali, dividindo esses dois mundos. Quer dizer, os valores simbólicos da foto são grandes: o muro, as piscinas, a quadra de tênis. É possível falar da desigualdade social, das injustiças, fotografando a arquitetura da cidade. Ela é uma foto que tem esse poder quase didático de explicar aquela situação, e o uso mais importante dela, para mim, é em livro didático. Ela é usada em livros de geografia em vários lugares do mundo. Esse uso é muito impactante, porque você forma uma geração de pessoas e isso gera um debate sobre o Brasil, sobre a desigualdade, e não sobre o autor. Depois, lá pelas tantas, falam: “Bom, acho que alguém fez essa foto, né?”, e tudo bem.
Os fotógrafos ficam divididos entre uma espécie de purismo do fotojornalismo, como ele foi entendido nos últimos anos, e uma outra corrente que quer romper as barreiras da linguagem. De uma forma geral, essa foi a discussão [sobre a fotografia de Gabriela Biló, publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 9 de janeiro deste ano, que simula uma bala que estilhaça a foto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva]. Eu, particularmente, acho uma imagem bastante infeliz e acho que há várias camadas para a gente compreender aquilo. É uma discussão longa, mas eu parto do princípio de que as regras e condutas aplicadas ao jornalismo escrito devem ser aplicadas ao fotojornalismo também. Nesse sentido, eu acho a montagem inaceitável na capa do jornal, sobretudo naquele contexto e momento histórico. No caso do fotojornalismo, eu acredito que existe um acordo tácito entre o jornal, o fotógrafo e o leitor que foi quebrado naquela fotografia. Há um certo vício no fotojornalismo de Brasília que associa elementos visuais separados em busca de uma leitura literal da imagem. No caso, o resultado é uma montagem digital que emula outra coisa. Ela até gerou um debate, mas isso não é exatamente uma qualidade.
Esse é um terreno bastante pantanoso da linguagem fotográfica: a relação da foto com a realidade. Livros e livros foram escritos sobre isso desde a invenção da fotografia. Qual a relação da fotografia com a verdade, com a realidade? Aquilo que a gente está vendo são os fatos? A fotografia, por um lado, prova uma série de coisas: ela pode provar um crime, pode provar que eu sou um homem branco de óculos vestindo uma camisa preta. Mas também é verdade que toda fotografia é uma espécie de construção que obedece à subjetividade do autor. Esse é o enigma da fotografia, é o que fascina. Quer dizer, negar totalmente a relação da fotografia com a realidade, é equiparar a fotografia ao desenho e à pintura, tirando dela o que ela tem de extraordinário. Por outro lado, se você buscar a realidade na fotografia, as coisas como elas são, você pode se dar mal também, porque os fotógrafos têm muitos recursos para enganar as pessoas. É difícil esse debate no fotojornalismo, e isso, claro, cria problemas. Mas há de fato uma nova geração de jovens que têm outra formação e se relacionam com a imagem de uma forma bem diferente. É preciso compreender isso.
Acho que o efeito dos drones não é tanto sobre o fazer fotográfico. O fotógrafo aprende a usar o drone, é uma coisa divertida, parece videogame. E ficou mais barato fazer fotos aéreas, antes a gente usava mais helicóptero. Agora, eu acho que o grande efeito desse tipo de imagem é no jeito que a gente está vendo as coisas. De repente, a gente está vendo o mundo como se fôssemos um pássaro ou uma espécie de deus. A gente passou a ver muita coisa de cima para baixo, de fora, e eu me pergunto sobre o que isso implica na nossa postura diante do mundo. As imagens aéreas também se parecem muito e tiram a autoria, pois parecem ter sido feitas por qualquer fotógrafo. Tudo fica atraente, bonito, e isso pode ser um problema. Claro que essas imagens são muito descritivas e podem ter um efeito pedagógico – a foto Paraisópolis é uma foto aérea. Mas eu acho que é preciso se perguntar se vale a pena, se é necessário e por quê você vai fazer essa foto aérea. Só por que ela é espetacular e bonita? Isso não é suficiente.
O nosso olhar fica muito aguçado quando a gente viaja. É a atração pelo estranho. Quantas pessoas só fotografam quando viajam? O olhar fica afiado, reparando nas coisas. E eu sempre acho um exercício muito interessante tentar fazer isso na nossa própria cidade. Esse olhar estrangeiro sobre a cidade de São Paulo me interessa muito. Talvez o grande desafio seja justamente a gente manter essa curiosidade, esse olhar sobre o desconhecido no nosso próprio ambiente. Enquanto o fotógrafo, o jornalista, tiver curiosidade, ele vai ter o que escrever, o que fotografar. Eu tenho uma curiosidade absurda. Se você diz para mim: “Tá vendo essas casas aqui? Você pode entrar em todas e fotografar. Menos nesta”. Eu penso: “É justamente essa que eu quero fotografar”.
Teleobjetiva Nesse projeto de doutorado, pretendo fazer um livro em que vou contar uma série de experiências minhas de viagem, de coisas que eu vi, e vou organizar as fotografias que fiz durante essas viagens. Também pretendo terminar o projeto das hipercidades e, talvez, voltar a dar aulas. Comecei minha atividade como professor na Escola da Cidade e acho muito gratificante. Aos 48 anos, não sou um grande senhor da fotografia, claro, mas já sinto a responsabilidade de transmitir coisas que eu aprendi na vida para os mais jovens. Gosto muito desse diálogo com as novas gerações, de aprender com elas também. No futuro, eu gostaria de estreitar esses diálogos intergeracionais.
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