Adoniran e o radioteatro

05/12/2023

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Quando escutamos Saudosa Maloca, Samba do Arnesto ou Trem das Onze, logo reconhecemos o estilo inconfundível dos sambas de Adoniran Barbosa, com seus “erros” propositais de português – que ele chamava de “o jeito certo de falar errado” – e a sempre bem-humorada crônica do povo pobre da cidade de São Paulo. Foi essa forma única de compor que fez com que Adoniran se tornasse o maior ícone do samba paulista. O que poucos sabem, no entanto, é que esse estilo tão original só pôde nascer depois de um longo período de gestação no universo do radioteatro. 

Muito antes de se consagrar como compositor, Adoniran já era um astro do rádio como intérprete cômico. Sua trajetória como radioator se inicia no final dos anos 1930 e se consolida nos anos 1940, quando ele ingressa na Rádio Record e conhece aquele que viria a ser o seu mais importante parceiro: o escritor Osvaldo Moles. 

Verdadeiro gênio do rádio, Moles nasceu em Santos em 1913, começou sua carreira profissional como jornalista, chegou a atuar como publicitário e também como roteirista de teatro, cinema e TV. Considerado um dos maiores cronistas da cidade de São Paulo, suas crônicas foram publicadas em diversos jornais da época e depois reunidas no livro Piquenique Classe C, lançado em 1962. Porém, seu principal meio de atuação foi, sem dúvida, o rádio.  

Dotado de uma criatividade inesgotável, Moles deu à luz uma infinidade de programas radiofônicos dos mais variados gêneros, desde os educativos e noticiários, até a sátira política, a ficção e o humor. E foi graças a eles que obteve um enorme reconhecimento em vida, como confirmam os mais de 10 troféus Roquette Pinto recebidos em sequência, desde a criação do prêmio, consagrando-o como o melhor programador do rádio paulista. 

Quando Adoniran Barbosa e Osvaldo Moles se conheceram, em 1941 na Rádio Record, a afinidade foi imediata. Moles logo reconheceu a veia humorística e a capacidade interpretativa do radioator Adoniran e criou diversos personagens especialmente para ele. Essa parceria no universo do radioteatro – que duraria até a morte precoce do escritor santista em 1967 – é um dos pilares da trajetória de Adoniran Barbosa, tanto profissional como artisticamente. 

João Rubinato (nome verdadeiro de Adoniran Barbosa) nasce em Valinhos em 1910 – ou 1912, nunca saberemos ao certo –, ainda criança se muda para Jundiaí, passa a juventude em Santo André e chega a São Paulo com seus vinte e poucos anos, querendo ser cantor. É nesse momento que ele cria o pseudônimo Adoniran Barbosa, mantido até o final de sua vida.  

Depois de ganhar como compositor um concurso de músicas carnavalescas da prefeitura de São Paulo em 1935 com a marchinha Dona Boa, Adoniran consegue enfim entrar para o rádio, mas ainda sem estabilidade alguma, pulando de emissora em emissora e atuando nas mais diversas frentes – como cantor, compositor, apresentador e até humorista. O fato é que sua carreira profissional no rádio só se consolida a partir de 1941, quando ele assina com a Record o contrato de radioator, que perdurará por mais de três décadas. 

No entanto, é preciso lembrar que este Adoniran dos anos 1940 ainda não era o Adoniran como conhecemos hoje. Ainda não havia Saudosa Maloca nem Samba do Arnesto. Embora ele já viesse usando seu nome artístico desde o início dos anos 1930, o fato é que seu estilo original só nasceria dez anos mais tarde; dez anos de profunda imersão no radioteatro, interpretando os personagens e textos criados por Osvaldo Moles. Não à toa, os anos 1940 foram o período musicalmente menos fértil de sua carreira: ao longo de uma década, foram somente 5 composições, das quais apenas 3 chegaram a ser gravadas. Porém, enquanto o compositor descansava, o radioator fazia fama. 

O primeiro personagem criado por Moles especialmente para o intérprete Adoniran foi o negro malandro Zé Cunversa, que desde o início já falava na gíria da Barra Funda: 

– Que é que há, Zé Cunva? Que tristeza é essa?
– Néca, seu Branco, né tristeza não; eu tô é ofendido. Num posso cum esses peste desses branco… Achá que nóis os preto devia de arranjá um outro logá pra passeá nos domingo… Eles vão querê me enganá que a rua Dereita é deles! Né não, a rua é livre. Eu sô preto, sô brasileiro e passelho na rua Dereita quando quisé. Me batê, ninguém vae. 

Havia também o judeu Moisés Rabinóvich, ardiloso vendedor da “Rua José Pauzinho”, no Bom Retiro, em cuja loja havia uma placa que dizia: “Compro móveis velhos/Vendo esplêndidas antiguidades”

Outro personagem importante dessa época, e também um dos primeiros, foi Giuseppe Pernafina, que ao lado de Noé formava uma dupla de taxistas italianos, colegas de ponto no Largo do Paissandu, caracterizados por Moles como “os motoristas que atropelam o vernáculo”. 

– Puxa vida, Noé…
– Puxa vida, Pernafina…
– Sabe de dindonde venho eu agora? Do Ispitar Aberto o Primo! Porque a minha mulher foi sobremetida a uma interjeição siderúrgica! 
– Que tinha ela?… Vae taquis? A penninziata separada? 
– Nó! Tinha os cárculo bilhar in cima do figo! Sufria ela de insoficência intipática! 

Como evidencia essa pequena amostra, entre os incontáveis personagens criados por Osvaldo Moles especialmente para o radioator Adoniran, desde o início já encontramos diversos tipos do povo paulistano, de diferentes regiões da cidade e com seus diferentes sotaques, e sempre com altas doses de humor. E é justamente nesse rico universo, criado por Moles, que o radioator Adoniran ficará mergulhado ao longo de toda a década de 1940. Somente após esses dez anos de imersão é que sua vivência no radioteatro começaria a reverberar em sua criação musical. E, curiosamente, isso só aconteceria depois de Moles migrar para a Rádio Bandeirantes, deixando o seu velho parceiro sozinho na Record. 

O compositor Adoniran Barbosa inaugura enfim o seu estilo original com o samba Saudosa maloca, em 1951. Dois anos depois, já viriam o Samba do Arnesto e, no lado B do mesmo disco, Conselho de mulher. Também conhecida como Pogréssio, a canção Conselho de mulher é o primeiro eco mais explícito do radioteatro no cancioneiro de Adoniran. Além de ser a primeira parceria musical dos velhos companheiros de radioteatro, a faixa traz um extenso e hilário monólogo de abertura – uma espécie de gênese do vagabundo – escrito por Moles e interpretado por Adoniran, na figura do personagem Zé Cunversa. Curiosamente, o artista era tão mais conhecido como radioator do que como compositor, que o próprio selo do disco, nos dois lados, indica o intérprete da seguinte maneira: “Adoniran Barbosa (Zé Conversa)”. Acompanhemos a fala introdutória e a letra original da canção: 

Quando Deus fêiz o home
Quis fazê um vagolino
Que nunca tivesse fome 
E que tinha no destino
Nunca pegá no batente
E vivê forgadamente 
O home era filiz  
Enquanto Deus ansim quis 
Mais dispois pegô o Adão  
E tirô uma costela 
Feiz a muié 
Deisde intão  
O homem trabáia prela 
Vai daí  
O home reza pra Deus  
Uma oração: 
Se quisé tirá de mim  
Arguma coisa de bão 
Que me tire o trabáio 
A muié não 
Pogréssio, pogréssio 
Eu sempre iscuitei falá
Que o pogréssio vem do trabalho 
Intão amanhã cedo, eu vou trabaiá 
Quanto tempo  
Nóis perdeu na boemia 
Sambando noite e dia 
Cortando uma rama sem pará 
Agora iscuitando o consêio da muié 
Amanhã vô trabalhá, se Deus quisé 
Mas Deus não qué 

Assim, o malandro Zé Cunversa, com sua característica ojeriza ao trabalho, o primeiro personagem criado por Osvaldo Moles para o radioator Adoniran, migra agora, dez anos depois, para o universo da música. E, na contramão da mentalidade da época, diante de uma São Paulo em intensa industrialização e urbanização, Moles e Adoniran fazem a sátira do pogréssio. Aliás, desde Saudosa maloca Adoniran já deixa claro que se coloca do ponto de vista do povo pobre da cidade, ou seja, daqueles que sofrem as consequências nefastas do chamado pogréssio

Poucos anos mais tarde, quando retorna à Record em 1956, Moles inaugura o caminho de volta, indo agora da música ao radioteatro: inspirado na canção Saudosa maloca, cria o programa Histórias das Malocas

Auge da trajetória de Adoniran como intérprete cômico e da criação de Osvaldo Moles para o radioteatro, o programa Histórias das Malocas foi uma das atrações mais populares do rádio paulista entre o final dos anos 1950 e o início dos 1960. Em tom satírico e tragicômico, os radiocontos apresentam os tormentos e as alegrias dos habitantes do Morro do Piolho, tendo como protagonista o negro malandro Charutinho e sua absoluta aversão ao trabalho. 

Deus – o majorengo do céu – feiz o hómi. Dispois, deu um escabriolete no Adão e tirô uma costeleta que ele tinha na cara e feiz a muié. Dispois feiz os trabaiadô. Dispois, quis fazê arguém feliz: e feiz nóis, os vagabundo. 

O sucesso do programa, por sua vez, acabou inspirando diversas composições, consolidando assim o caráter de mão dupla dessa fértil relação entre música e radioteatro na obra de Adoniran Barbosa. A primeira delas, parceria com Moles gravada em 1958 pelo próprio Adoniran, foi o samba Pafunça, uma homenagem à namorada de Charutinho e filha de dona Terezoca na série radiofônica. No ano seguinte, com outros parceiros, Adoniran cria a marcha Aqui Gerarda, que transforma em música o popular bordão de Charutinho à época, e o samba No Morro do Piôio, que resume a trama de um episódio e, no breque final, inclui uma cena de radioteatro. Curiosamente, as duas composições foram lançadas na voz do próprio Charutinho, que de fato aparece no selo dos discos como intérprete. Mais tarde, o protagonista do programa Histórias das Malocas lançaria ainda o samba Chora da rampa e a marchinha carnavalesca Segura o Apito, as duas últimas criadas por Adoniran em parceria com Osvaldo Moles. 

Porém, a principal reverberação do radioteatro na trajetória musical de Adoniran Barbosa foi, sem dúvida, o samba Tiro ao Álvaro. Um dos maiores sucessos do cancioneiro de Adoniran, eternizado na voz de Elis de Regina em 1980, Tiro ao Álvaro é considerado um dos melhores exemplos do estilo consagrado do compositor Adoniran, principalmente pelos hilários erros propositais de português. Porém, ainda para a surpresa de muitos de nós, a letra da canção foi escrita na verdade por ninguém mais, ninguém menos que Osvaldo Moles. Adoniran criou apenas a melodia. Além disso, a canção foi lançada em 1960, no auge do programa Histórias das Malocas, em disco de 78 rpm, na voz do próprio Charutinho. Segue a letra da gravação original: 

De tanto levá
Frechada do teu olhá 
Meu peito até 
Parece sabe o quê? 
Táubua de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furá 
(Não tem mais) 
Teu olhar mata mais  
Do que bala de carabina 
Que peixeira de baiano 
Que veneno estricnina 
Teu oiá mata mais 
Que atropelamento de artomórve
Mata mais que bala de revórve  

Tiro ao Álvaro é a síntese maior da ligação umbilical entre música e radioteatro na trajetória artística de Adoniran Barbosa. Sem exagero, podemos dizer que a vivência de Adoniran no radioteatro, em parceria com Osvaldo Moles, é a terra fértil onde foi gestado o seu estilo musical original. De certo modo, o que ele faz é estender a sua longa e fecunda colaboração com Moles no radioteatro para o universo da música. 

Uma das reminiscências mais evidentes do radioteatro na obra musical de Adoniran são as falas que ele inclui em grande parte de suas composições. Do bilhete que o Arnesto deveria ter deixado na porta (“assinado em cruz porque não sei escrever”), ao hilário Sargento Oliveira em Um samba do Bixiga (“Carma, pessoá! A situação aqui tá muito cínica. Os mais pió, vai pas Crínica”); do lamento tragicômico do noivo de Iracema, diante do atropelamento de sua amada, ao impagável diálogo entre a lâmpida e as mariposa, essas falas reforçam ainda mais o caráter cênico já presente em suas canções. Uma das marcas registradas de seu estilo original, Adoniran faz questão de saboreá-las, valendo-se de toda a sua maestria como intérprete cômico. Principalmente quando se trata de um show ao vivo, como é o caso deste precioso Relicário dedicado ao artista pelo Selo Sesc. 

Adoniran Barbosa, ele mesmo um personagem que João Rubinato incorpora em sua vida cotidiana, é antes de tudo um palhaço, que conduz suas apresentações sempre de maneira muito espirituosa e com o domínio completo sobre o público. Neste Relicário, por exemplo, desde o início Adoniran estabelece um jogo de pergunta e resposta com a eufórica plateia (“Cada vez que eu falá ‘muito obrigado’, cêis falam ‘não tem de quê!’, tá bom?”); repentinamente, interrompe uma música mal começada para pedir o seu “mel”, que aliás permeia o show inteiro; e, bem ao feitio de Osvaldo Moles, inventa palavras inusitadas como “desvórta” e “vocêizes”. 

Mas Adoniran Barbosa também é um palhaço triste, que sofre em todos os sentidos com a passagem do tempo. A música de abertura deste Relicário, por exemplo, o samba Já fui uma brasa, é uma espécie de lamento autobiográfico, de um Adoniran que já começa a sentir o peso da idade. Lançado em 1966, um ano após o encerramento do programa Histórias das malocas, a canção marca o declínio de sua carreira como radioator, ao mesmo tempo em que denuncia a desvalorização do samba no meio radiofônico após a ascensão da Jovem Guarda: “mas lembro/que o rádio que hoje toca/ieieiê o dia inteiro/tocava Saudosa maloca

Ora mais palhaço, ora mais triste, Adoniran é o poeta da cidade, sensível às suas profundas transformações, seja na denúncia das contradições do pogréssio, seja no lirismo saudosista de uma São Paulo que não volta mais. Tudo isso sem nunca abandonar o ponto de vista do povo pobre e trabalhador. É o que vemos, por exemplo, em dois sambas dos anos 1970, que fazem referência à construção do metrô, e que também compõem o repertório deste Relicário: Uma simples margarida, que conta a história de amor entre dois funcionários da prefeitura, um jardineiro e uma margarida (sinônimo feminino de gari), e Viaduto Santa Efigênia, cujo pretexto foi um boato de que o viaduto seria demolido para a construção de uma estação de metrô – embora no fim das contas tenha sido apenas reformado e se tornado exclusivo para pedestres. 

Por fim, este Relicário reafirma seu valor histórico ao trazer a público um registro inédito da música Vai da valsa na interpretação do próprio Adoniran – uma composição de 1953, que não chegou a ser gravada em disco ao longo de toda a sua carreira. 

Tomás Bastian é doutor em Filosofia e criador da Rádio Rubinato, projeto de pesquisa e difusão da obra de Adoniran Barbosa. É autor e diretor do disco-livro Adoniran em partitura: 12 canções inéditas (2017).


Sobre Relicário: Adoniran Barbosa (Ao vivo no Sesc 1980), leia também:


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