Mais famoso cronista de São Paulo e um dos que mais citaram a cidade em suas músicas, Adoniran Barbosa eternizou seus personagens e as mudanças pelas quais a metrópole passou no período de sua modernização, no que o jornalista Eduardo Martins chamou, em 1980, no Estado de S. Paulo, de tombamento musical de uma cidade cujos símbolos resistem apenas na memória. Ninguém na música retratou de forma tão afetiva a capital paulista, que, em uma velocidade que saltava aos olhos, caminhava na direção do lugar que seria chamado de “locomotiva do Brasil”.
No álbum Relicário: Adoniran Barbosa (ao vivo no Sesc 1980), novo e quarto lançamento do projeto Relicário, do Selo Sesc, algumas de suas canções mais emblemáticas ajudam a contar essa história que marca a passagem do tempo na capital paulistana. No palco do Teatro Pixinguinha, que funcionava no Sesc Consolação, acompanhado pelo conjunto Talismã, ao longo de onze faixas ele se lembra com saudosismo do passado, faz críticas ao chamado progresso e cita personagens tipicamente paulistanos, em geral com muito humor, tarefa fácil para o ex-comediante que ficou conhecido com o personagem Charutinho.
A fita máster foi doada por Max Boschi ao Sesc Memórias — criado em 2006 para reunir, sistematizar e disponibilizar a documentação produzida e/ou acumulada pelo Sesc —, quando ele foi convidado a participar do projeto de História Oral, que reúne relatos de funcionários e ex-funcionários que atuaram em programas ligados ao Sesc São Paulo. Boschi ingressou na instituição como orientador social nas Unidades Móveis de Orientação Social. Unimos, como eram chamadas, eram carros grandes, do modelo Veraneio, que, entre 1965 e 1976, circularam por diversas cidades do estado, com equipes de orientadores sociais que realizavam atividades em localidades onde não havia equipamentos socioculturais do Sesc. Passou pelas unidades de Campinas, São Carlos, Araraquara e Bertioga, além de Consolação, Pompeia e pela sede administrativa do Sesc São Paulo, as três na capital. Uma de suas atuações mais marcantes foi como coordenador do Instrumental Sesc Brasil, nos oito primeiros anos do projeto.
Naquele ano de 1980, Adoniran Barbosa, o sambista mais proeminente de São Paulo, celebrava seus 70 anos (completados em agosto), com direito a um dia de festa que começou com missa na Igreja Nossa Senhora Achiropita, padroeira do Bixiga, e terminou com um show em uma praça no bairro, reduto italiano na cidade — que o filho de imigrantes João Rubinato, seu nome verdadeiro, muito frequentou. Ele ainda lançou o álbum “Adoniran Barbosa” (também conhecido como “Adoniran Barbosa e Convidados”), apenas o terceiro em quase cinquenta anos de carreira, com participação de nomes do quilate de Clara Nunes, Djavan, Elis Regina, Gonzaguinha, Clementina de Jesus, Carlinhos Vergueiro, MPB 4 e Roberto Ribeiro, prova inequívoca de seu prestígio.
A apresentação, que aconteceu na manhã de um domingo, 20 de janeiro de 1980 no Sesc Consolação, começou com a divertida “Já Fui Uma Brasa” (composição dele com Marcos César), referência à expressão “é uma brasa”, popular entre os jovens artistas da época em que a canção foi lançada, no primeiro álbum do artista, “Adoniran Barbosa” (1974). “Hoje o rádio que toca iê-iê-iê / tocava ‘Saudosa Maloca’”, diz um trecho. No meio da música, ele faz uma brincadeira: “Eu ia passando, o broto olhou pra mim e disse: ‘É uma cinza, mora?’”, fala, arrancando risadas da plateia. “Enganei o broto, porque, debaixo da cinza, se assoprar, tem muita lenha pra queimar”, completa, ganhando aplausos.
Bem-humorado, Adoniran diz ao público para responder “não tem de quê” depois que ele disser “muito obrigado”. E pede: “Me dá o meu mel, por favor, o meu mel”, fazendo referência à sua bebida, sendo aplaudido novamente. Em seguida, é a vez de “As Mariposas”, composição do próprio, em que compara os insetos voando em volta das “lâmpidas” com mulheres em torno dele. A cena foi vista pelo artista em um casarão abandonado e inspirou a brincadeira.
Em entrevista ao Estado de S. Paulo, em 10 de março de 1979, o cantor e compositor falou sobre a pronúncia errada de certas palavras, uma marca de suas criações. “Nas minhas músicas, eu quero é falar para o povo, do jeito que o povo fala. O povo fala errado mesmo, ‘nós fumu’, ‘nós cheguemo’. Não dá para dizer, por exemplo, ‘vamos conosco’. Ora, ‘vamos conosco’ não dá pé”, argumenta.
A próxima música é o clássico “Samba do Arnesto” (parceria com Alocin), que foi censurado pela ditadura e não pôde ser lançado no primeiro álbum do artista, de 1974, tendo sido liberado apenas para o segundo disco, de 1975. A justificativa? Não era admissível “a utilização do mau vernáculo nos meios de comunicação”. Gravada em 1955 pelo próprio Adoniran, em um disco de 78 RPM, fez pouco sucesso, embora ele estivesse no auge de sua carreira como comediante. A faixa só viria a estourar no registro do grupo Demônios da Garoa, em 1957. Segundo o violonista Ernesto Paulelli, o amigo havia feito a composição para ele.
“Um Samba no Bexiga”, que dialoga com as origens de Adoniran e sua relação com o bairro, é lotada de referências: “Domingo nós fumo num samba no Bixiga / Na Rua Major, na casa do Nicola / À mezza notte o’clock / Saiu uma baita duma briga / Era só pizza que avuava / Junto com as brachola”. “Acho gozado quando me perguntam quando eu componho as minhas músicas. Não tem segredo. É só observar o mundo que está aí que a coisa sai de dentro da gente”, disse o artista ao jornal O Estado de S. Paulo em 1979.
Em “Iracema”, sobre a amada que foi atropelada em plena Avenida São João, ele denuncia os perigos que as grandes mudanças no trânsito trouxeram: “Iracema, eu sempre dizia / Cuidado ao travessar essas ruas / Eu falava, mas você não me escutava, não / Iracema, você travessou contra-mão”, anuncia a letra. Conta-se que a atriz Nair Belo reprovou a ideia da música: “Adoniran, você está louco? O que é isso, fazer um samba sobre mulher atropelada? Ninguém vai gostar de uma coisa dessas. Pode ter certeza”, sentenciou. A faixa, no entanto, viria a ser gravada por ele com Elis Regina, em um especial de TV de 1978, e com Clara Nunes, no álbum de 1980.
Mesmo a romântica “Uma Simples Margarida” é marcada pela observação do avanço do progresso na cidade. “Eu menti pra conquistar seu bem-querer / Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro / Que o metrô de São Paulo estava em minhas mãos”, comentou. O bom humor também está presente na marchinha “Senta Senta”, de letra minimalista. “Atenção que a música que vou cantar é muito importante”, diz ele, antes de entoar “Vai da Valsa”, samba nunca gravado em disco pelo artista, em que brinca com a pausa: “Eu gosto de mulher bonita / Mas quando ela está sem calça… Comprida”, diz a letra. “Viaduto Santa Efigênia”, por sua vez, é uma ode a esse marco arquitetônico de São Paulo.
“Saudosa Maloca”, a que vem seguida, é inspirada em uma história real, que mostra o processo de gentifricação de alguns bairros da metrópole, ao falar sobre uma casa que deu lugar a um edifício alto — a maloca citada na letra, segundo Adoniran, eram na verdade as ruínas de um hotel na Rua Aurora, na República, onde habitaram Joca e Mato Grosso, personagens da música.
Atendendo aos pedidos de “mais um”, ele volta para o bis, a 11ª faixa, sua música mais conhecida, “Trem dos Onze”. Com ela, conseguiu quebrar um tabu por ser paulista e ganhar um concurso de carnaval promovido pela prefeitura do Rio em 1965, na comemoração dos 400 anos da cidade. Ele de fato pegava um trem em um momento de sua vida, mas Jaçanã só entrou na letra por rimar com “de manhã”, já que o destino de Adoniran era mesmo Santo André, no ABC Paulista. E ele não era filho único: quem chegava mais cedo em casa, para fazer companhia à mãe, era seu irmão mais novo.
O registro é um compêndio emblemático de canções do filho de imigrantes italianos que conseguiu captar o espírito de São Paulo e seus tipos como ninguém. A cidade retratada em suas músicas era a que ficou invisível quando a metrópole entrou no processo de modernização, tendo como personagens os trabalhadores, as pessoas comuns que ajudaram a construir a locomotiva, mas nunca tiveram a devida visibilidade nesse processo. Unindo bom humor e melancolia, Adoniran Barbosa descreve com maestria uma cidade que foi desaparecendo diante de seus olhos.
“Até os anos 60, São Paulo ainda existia. Depois, procurei, mas não achei São Paulo. O Brás, cadê o Brás? O Bexiga, cadê o Bexiga? Afora as ruas 13 de Maio, Fortaleza e Rui Barbosa, não existe mais o Bexiga. Mandaram achar a Sé, mas não achei”, disse ele, em citação publicada pelo Estado de S. Paulo em 1982. Essa cidade, no entanto, até hoje pode ser encontrada em suas canções.
Kamille Viola é jornalista e pesquisadora musical. Autora do livro “África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”, lançado pelas Edições Sesc.
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