Que rei sou eu?

04/04/2023

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Em 1998, aos 66 anos, João Gilberto vivia isolado em seu apartamento no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Não atendia o telefone nem abria a porta e pouco saía à rua. Exigente, implicava com a qualidade do som em seus shows e irritava-se com barulhos durante suas apresentações. O Sesc Vila Mariana havia sido inaugurado em dezembro do ano anterior, e o pai da bossa nova era um dos primeiros grandes nomes a pisar no palco de seu teatro. Portanto, quando o artista foi fazer uma série de shows no espaço, entre três e cinco de abril daquele ano, o clima era de tensão.

Mas tudo correu magicamente bem, como revela a gravação inédita que vem à luz 25 anos depois. Registrado na última noite daquela curta temporada, o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) chega agora aos ouvidos do público pelo Selo Sesc, inaugurando o projeto Relicário, e mostra um João Gilberto compenetrado e bem-humorado diante de um público reverente.

Entre as preciosidades da apresentação, está uma música até então inédita em seu repertório, que ele jamais registraria em estúdio. “Rei sem coroa” foi feita por Herivelto Martins a partir de um tema que recebeu de Waldemar Ressurreição, seu parceiro nessa e em muitas outras músicas. A letra foi inspirada na história do rei Carlos II, da Romênia, que, após ser forçado a abdicar de seu trono durante a Segunda Guerra, em 1940, foi viver no Copacabana Palace “sem nenhuma realeza ostensiva” e logo virou assunto no Rio de Janeiro.

A história inspirou duas músicas da dupla, ambas interpretadas por Francisco Alves, que, curiosamente, era conhecido como o Rei da Voz. “Que rei sou eu?” foi registrada em novembro de 1944 e saiu em janeiro do ano seguinte, tornando-se um grande sucesso no carnaval, enquanto “Rei sem coroa” foi gravada em abril de 1945 e lançada em maio do mesmo ano.

João Gilberto abrira em Salvador a turnê que celebrava as quatro décadas da bossa nova, que passaria ainda por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Maceió. O marco comemorativo era o lançamento, em agosto de 1958, do compacto de 78 rotações contendo de um lado “Chega de saudade” (clássico de Tom e Vinicius que havia sido lançado em abril daquele ano na voz de Elizeth Cardoso, no disco Canção do amor demais, contando com a participação de João e sua batida diferente ao violão) e do outro “Bim bom” (uma das raras composições do baiano). Aos organizadores, fizera apenas quatro pedidos: um banco para piano, um tapete persa, uma mesa para violão e acústica perfeita — esse último item o maior desafio.

O registro do show no Sesc Vila Mariana ficou intocado por 20 anos. Até que, em 2018, o Sesc iniciou as movimentações para lançar o álbum. Ficou a cargo de João Zilio, responsável pelo estúdio da unidade em 1998 e hoje coordenador do acervo audiovisual do Sesc, a missão de resgatar gravações originais. Mas ele não se deu conta de que, na caixa com fitas que entregou à empresa responsável pela masterização, estava faltando justamente a do show de João Gilberto. Voltou diversas vezes ao antigo estúdio em busca da master, mas nada.

Até que se lembrou de que havia feito uma cópia da fita para que pudesse escutá-la de forma mais prática, mas que continha um sério problema: para que a gravação coubesse nos 74 minutos de um CD, ele havia feito cortes abruptos, eliminando as palmas e a reverberação da última nota de cada canção. Procurou um profissional de masterização de alto nível para inserir barulho de aplausos e tornar o som mais próximo do original, mas, por mais bem-feito que estivesse, o efeito soava pouco natural.

Mesmo assim, Zilio ainda não se conformava: ele próprio havia guardado a fita junto às outras. Como podia ter sumido? Voltou, mais uma vez, ao Sesc Vila Mariana. Começou a vasculhar pelo estúdio, até que encontrou uma caixa de fitas cassete que estavam separadas para arquivamento e foi aí que, ao abrir, finalmente se deparou com a master do show do João Gilberto. Surgia, assim, a gravação que vem à tona no projeto Relicário. A mesma que o próprio João Zilio havia preenchido com o nome do artista e a data do show 20 anos antes.

Foto: A máster original do show gravada em fita DAT. Acervo Sesc Audiovisual

O álbum buscou ser o mais fiel possível ao que aconteceu naquele domingo no teatro do Sesc Vila Mariana, capturando a atmosfera da apresentação. Foram preservados os silêncios e até as tosses dos espectadores. Ao longo de quase duas horas, João canta sobre amores e desamores, as saudades da Bahia e o próprio samba. Em absoluto respeito e reverência, a plateia parece ouvir cada nota com atenção. Sem dizer quase nenhuma palavra, o cantor é ovacionado ao fim de cada música.

Lá pela décima faixa, um momento de tensão. “Tô achando dura (sic) as cordas do violão, será alguma coisa aí, ar, fogo?”, diz, depois de cantar “Louco”, de Henrique de Almeida e Wilson Baptista. Todos parecem prender a respiração, mas ele rapidamente emenda na música seguinte, “Pra que discutir com madame”. Mais adiante, outro dos raros momentos em que João fala, ao fim de “Corcovado”: “Octavinho, vem aqui, por favor. Dá licença, desculpa.” Trata-se do produtor musical Octávio Terceiro, seu fiel escudeiro por 40 anos, falecido em outubro de 2020. “Grande Octávio”, diz o artista, arrancando risadas do público, que parece aliviado com o clima tranquilo do show.

Das 36 faixas, apenas uma era de autoria própria, a instrumental “Um abraço no Bonfá”. Como era costume ao longo de sua carreira, João Gilberto mesclou sobretudo sambas antigos e clássicos da bossa nova. O mais impressionante a respeito do vasto repertório de sambas dos anos 1940 e 1950 do artista era que, segundo consta, ele não colecionava discos — e, na época, não havia internet. Ele trazia essas canções guardadas na memória, tocava-as para si próprio exaustivamente, criando novas harmonias, lapidando-as até considerá-las prontas, para, enfim, apresentá-las, completamente transformadas, em seus shows. E seguia modificando-as, por isso uma apresentação sua jamais era igual a outra.

A receita foi sendo decifrada ao longo de décadas por seus súditos: desacelerando o samba, ele reproduziu a batida do tamborim com três dedos da mão direita no violão, e a do surdo com o polegar. A cadência se repete, de forma circular, e a divisão rítmica é precisa: ora ele canta se adiantando em relação ao violão, ora se atrasando. Em João Gilberto, voz e violão têm o mesmo volume e se fundem, tornando-se um só corpo.

O álbum abre com “Violão amigo”, de Armando Marçal e Bide, de quem canta também “A primeira vez”. De Caymmi, um dos compositores mais gravados por ele, João Gilberto pinçou “Doralice” (parceria com Antonio Almeida), “Rosa Morena” e “Saudade da Bahia”. “Isto aqui o que é?”, de Ary Barroso, outro preferido de João, e o choro “Carinhoso” (Pixinguinha e João de Barro) também marcam presença. E ele interpreta ainda três músicas gravadas por Orlando Silva, o cantor que mais admirava: “Curare” (Bororó), “Aos pés da cruz” e “Preconceito” (as duas últimas de Zé da Zilda e Marino Pinto).

Da bossa nova — rótulo que ele renegava, afirmando- se um artista de samba —, João Gilberto evoca muitos sucessos no registro, a maioria de Tom Jobim, outro do seu rol de autores preferidos, dando ao público o que se esperava de uma turnê comemorativa, afinal. “Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de Bossa Nova e que eu chamo de samba, de música brasileira — ampla, rica, infinita, sobre a qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal”, disse ele ao jornal O Globo em uma rara entrevista, em 1979.

“Corcovado” e “Wave” (de Tom Jobim), “Retrato em branco e preto” (de Tom e Chico Buarque), “O pato” (Jayme Silva e Neuza Teixeira), “Chega de saudade” (Tom e Vinicius), “Desafinado”, “Samba de uma nota só” e “Caminhos cruzados” (as três de Tom e Newton Mendonça) são algumas das músicas do movimento que João ajudou a fundar no repertório.

Em “Chega de saudade”, o cantor dá a deixa para que o público interprete a música, parando de cantar, mas continuando a tocar. Suavemente, a plateia pouco a pouco vai entrando na brincadeira. Ao final, ele se mostra simpático: “Eu adoro esse coral, hein, eu gosto disto (risos). Às vezes eu quero pedir, mas fico com vergonha”, garante, para risada geral. O clima é tão bom que os fãs se arriscam a gritar pedindo canções — um deles seria atendido mais à frente, quando ele entoa “Wave”, penúltima da gravação (“Cês sabem ‘Wave’?”, provoca João). Ele volta a incentivar o coral em “Eu sei que vou te amar”, e é mais uma vez atendido. O álbum termina com a jobiniana “Este seu olhar”, seguida de uma ovação.

Há muito aguardada pelos fãs do artista, a gravação mostra um João Gilberto à vontade como raras vezes se teve notícia em suas apresentações no Brasil. Não à toa, para muitos os shows no Sesc Vila Mariana estão entre os melhores do cantor naquele período. Longe do vai e vem de garçons, de barulhos de copos e talheres, em um teatro com boa acústica e equipamento de som de qualidade, ele executa as canções com meticulosa precisão. Durante quase duas horas, ele faz o que sabia fazer de melhor: reinventar a música brasileira.


A história por trás da capa

A capa do álbum traz um grafite feito pelo artista visual Speto, importante nome da arte urbana, em homenagem a João Gilberto. O trabalho foi registrado em 2020 em uma empena de um edifício na Avenida Senador Queirós, no bairro da Santa Ifigênia, próximo ao Mercado Municipal, em São Paulo. Speto, que é fã do músico, conta que a ideia surgiu em 2019 após o falecimento de João Gilberto, que o deixou muito comovido, além de chateado porque o governo federal não fez uma homenagem sequer a um dos maiores artistas que o Brasil já teve. Indignado, entendeu que precisava fazer alguma coisa.

Foto: Obra do artista visual Speto em homenagem a João Gilberto no centro de São Paulo, 30/9/2020. © Daniel Frias

Por meio de amigos em comum, chegou até Bebel Gilberto, filha de João, e propôs a homenagem com muito tato, já que a perda era recente. Ela adorou a ideia e disse que era fã de seu trabalho. Com a aprovação, começava outra fase: ele precisava da verba para realizar o projeto, já que o custo para pintar um prédio é alto, ainda que sem lucro algum. Ficou tentando por meses, até que a Secretaria de Cultura de São Paulo soube da ideia e resolveu viabilizá-la.

O artista explica que fez a imagem usando o mínimo de traços possível, em alusão ao minimalismo da bossa nova e, sobretudo, de João Gilberto. O artista está sentado, flutuando, no Rio de Janeiro, cidade onde viveu. E está abafando o violão, como faz quem acaba de tocar uma música, em alusão ao fim de um ato, à vida chegando ao final.

Foto: Obra do artista visual Speto em homenagem a João Gilberto no centro de São Paulo, 16/3/2023. Matheus Jose Maria

Kamille Viola é jornalista e pesquisadora musical. Autora do livro “África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”, lançado pelas Edições Sesc.


Sobre Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998), leia também:


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