João Bosco tinha 31 anos de idade e nove de carreira quando estreou a turnê do disco Tiro de Misericórdia, em 30 de março de 1978, no Teatro Pixinguinha, que funcionava no Sesc Consolação, em São Paulo. Era seu quarto álbum e, apesar da propalada abertura política que o país começava a experimentar, o trabalho havia sofrido censura: uma faixa havia sido inteiramente vetada e outra teve versos modificados, o que obrigou a gravadora a refazer o encarte e atrasar o lançamento. O disco saiu em dezembro de 1977, com uma canção a menos (“Essa é a Sua Vida”).
Mas isso não impediu que a crítica social contundente das músicas da dupla João Bosco e Aldir Blanc (1946-2020) estivesse lá, firme e forte, no show que ficou em cartaz no espaço. Foram 12 noites, de quinta a domingo, até o dia 23 de abril, quando foi registrada a apresentação que originou o álbum João Bosco (ao vivo no Sesc 1978), terceiro lançamento do projeto Relicário, que vem à luz 45 anos depois daquela temporada.
Para o artista, ouvir a gravação após tanto tempo permitiu um reencontro com uma versão sua que andava escondida em algum canto da memória. “Foi muito emocionante”, conta ele. “Eu estava escutando um João Bosco do qual eu já não me lembrava. Junto dele, vieram as ideias dessa época. E, de certa maneira, me deixou muito contente, porque esse João Bosco confirma o de hoje, o de Mano Que Zuera (2017), o de Abricó-de-Macaco (2021). Esse João Bosco continua dando passos em frente numa mesma linha”, comemora.
O show era uma espécie de retrospectiva da carreira do cantor e compositor, e foram escolhidas músicas de seus quatro álbuns, além de “Agnus Sei”, sua primeira música lançada, no compacto Disco de Bolso do Pasquim: O Tom de Tom Jobim e o Tal de João Bosco (1972) — que no lado A trazia a então inédita “Águas de março”, de Jobim. Cinco são de Tiro de misericórdia, seis de Caça à Raposa (1975), quatro de Galos de Briga (1976) e uma de João Bosco (1973). Um repertório cheio de clássicos, como “Gênesis (Parto)”, “Latin Lover”, “Kid Cavaquinho”, “Bijuterias”, “De Frente Pro Crime”, “Incompatibilidade de Gênios” e “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, que em 1974 havia projetado João e Aldir ao ser gravada por Elis Regina no álbum Elis.
Se o recém-lançado disco era a saga de um herói brasileiro que começava com seu nascimento, em “Gênesis (Parto)”, e terminava com sua morte, na faixa-título, no show não era diferente: o repertório tinha sido dividido em quatro blocos temáticos, com músicas que denunciavam as injustiças sociais e as mazelas políticas do Brasil, mas também as que retratavam com lirismo e humor as alegrias e as desventuras dos mais diferentes tipos do subúrbio carioca.
“O primeiro é a infância, a visão lírica encontrada em diversas composições; o contato com a vida, o conhecimento do mundo, da mulher, como em ‘Dois Pra Lá, Dois Pra Cá’. O terceiro bloco abre a segunda parte do programa e apresenta o dia a dia dos jornais e da vida, características de canções como ‘De Frente Pro Crime’. E o último bloco é a síntese de tudo, todo o trabalho dos dois, ressaltando-se o peso político”, disse na época Paulo Emílio (da Costa Leite (1941-1990)), diretor do espetáculo, ao Estado de S. Paulo.
O poeta e compositor, que também assinava a luz, havia feito parte do Movimento Artístico Universitário (MAU) ao lado de Aldir Blanc, Gonzaguinha (1945-1991) e Ivan Lins, entre outros. Desde a época em que João lançou “Agnus Sei”, sua primeira música, quem fazia esse papel nas turnês era Aldir, parceiro na maioria das músicas gravadas por ele até então. Mas o letrista carioca parou de andar de avião, e João convidou Paulo Emílio para dirigi-lo. “Ele era muito ligado ao Aldir e sabia como ele gostaria que tudo fosse. Então era uma coisa perfeita, porque era uma forma do Aldir também estar ali presente”, recorda João.
A abertura, com “Gênesis (Parto)”, com quase sete minutos de percussão (tocada por quatro músicos: dois percussionistas, o baterista e o baixista), pontuada apenas por improvisos vocais, já dava uma pista do que estava por vir: um show marcado pela influência africana na formação da música brasileira, algo que atravessaria toda a sua obra. João conta que sua ligação com essa sonoridade vem de sua cidade natal, Ponte Nova (MG), onde gostava de ir atrás dos blocos de congada, expressão cultural e religiosa afro-brasileira que mistura dança, música, teatro e espiritualidade de matriz africana e católica. “O parto é a África. É daí que nascemos, é daí que viemos”, diz o artista.
João Bosco detalha que a escolha do repertório foi permeada pela força percussiva e pela musicalidade barroca, outra de suas principais influências. Das Minas Gerais, onde nasceu e cresceu, ao Rio de Janeiro, onde veio viver no início de sua carreira — e encontrou o parceiro com quem compôs por décadas, criando mais de cem composições —, surgiu a sonoridade que deságua em sua música. “Esses momentos que nos remetem ao universo de uma África local, que é o samba, o jongo, o afro-samba e afins. Porque essas coisas têm nomes diferentes, mas pertencem ao mesmo universo”, analisa. Bolero, choro, jazz e até uma marcha-rancho (“Rancho da Goiabada”) se somam a esse rol de ritmos, que frequentemente se misturam.
João Bosco, na voz e no violão, é acompanhado no show por Darcy de Paulo (1953-2000), no Fender Rhodes, arp strings e arranjos; Nilson Matta, no baixo; Everaldo Ferreira, na bateria; e Chacal (1941-2011) e Moura na percussão. A gravação reaproximou João da lembrança desses artistas, já que Matta é o único que está vivo — Paulo Emílio e Aldir Blanc também já partiram. “De uma certa maneira, ouvir esse show me trouxe também essas pessoas, que me são muito caras. E vê-las atuando comigo foi muito bonito. Essa questão da memória nos mostra o quanto é importante registrá-la”, observa ele.
No show daquele domingo, 23 de abril, ele se dirige ao público duas vezes. A primeira é depois do bolero “Latin Lover”, quando faz um agradecimento. “Hoje é o nosso último dia aqui. Nesse teatro, nessa programação do Sesc. E último dia, a gente tá muito contente de ter feito esse trabalho aqui. Principalmente pros comerciários, que é um público que a gente faz questão que eles escutem as coisas da gente. E agradecer também as pessoas que nos ajudaram aqui, nesse trabalho, e daí vai desde a nossa camareira até aquela luz lá em cima. Uma homenagem ao abajur lilás, do Quem-Quem”, essa última frase uma referência ao bolero “Que será”, de Marino Pinto e Mário Rossi, sucesso da voz de Dalva de Oliveira. de 1950 (dos versos: “Que será / Da luz difusa do abajur lilás / Se nunca mais vier a iluminar / Outras noites iguais”).
Quem-Quem, por sua vez, era o técnico de som de Roberto Carlos. João não se lembra exatamente do que aconteceu, mas acredita que ele tenha feito o som daquela noite na amizade, ou que estivesse perto do som na hora em que ele falou. “O Quem-Quem trabalhou comigo no projeto da Souza Cruz, Sabor Bem Brasil, que tinha o Luiz Gonzaga, a Clara Nunes, o Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo, eu e o Regional do Caçulinha. Ele foi o engenheiro de som. Isso aí foi 75 para 76. Ele era muito amigo do Caçulinha. E ficou muito, mas muito amigo meu. Era uma pessoa gente fina pra caramba, um p*** de um engenheiro de som”, elogia. A segunda vez em que João se comunica com a plateia é no início de “Kid Cavaquinho”, quando conclama o público a cantar: “Agora vocês!”, sendo prontamente atendido.
Entre uma música e outra, por vezes ele declama textos, alguns deles criados especialmente para a turnê Tiro de Misericórdia. “Em setembro, se Vênus me ajudar, virá alguém. Eu sou de virgem, e, só de imaginar, me dá vertigem”, fala ele, para emendar em “Bijuterias”. No meio de “Agnus Sei”, entre versos e improvisos vocais, ele diz: “Por onde nasceram, viveram e viverão as cortesãs? Os deprimidos, os humilhados e ofendidos, as donzelas, matronas, bicheiros, corsários, mutirão e motins?”. Mais improvisos, e ele retoma: “Por onde andaram e pisaram e lançaram os dados os pivetes, piratas, gigolôs, pederastas, dentistas, banguelas, balangandãs, ametistas, pivôs, roncos da cuíca, minha tia, meu irmão, meu avô? Inquilinos, sicranos, vizinhos, senhorios?”. E segue dizendo o texto, com os instrumentos tocando ao fundo.
Na época, ele pediu a Paulo Emílio que escrevesse falas para ele, precisava dizer algumas coisas. “Esse texto imenso que taí no “Agnus Sei” é dele e do Aldir. Eu tinha me esquecido desse troço. Ele foi feito especialmente para aquele show, e somente para aquele show”, frisa ele. Embora o rap na época ainda fosse um movimento nas ruas do Bronx, em Nova York, e desconhecido no mundo, João Bosco lembra que a origem do canto ritmado estava no continente africano, o que fazia com que manifestações semelhantes já tivessem acontecido no Brasil, como a música “Deixa Isso Pra lá”, de Jair Rodrigues, de 1964. “Não é à toa que esse show começa com essa África que, de fato, é a mãe de todos, é a origem de tudo.”
Espaço que marcou época, o Teatro Pixinguinha foi construído em três meses no Ginásio Vermelho, segundo andar do Sesc Consolação. Inaugurado em setembro de 1977, tinha 1800 lugares e surgiu para abrigar o Projeto Pixinguinha, idealizado por Hermínio Bello de Carvalho, primeira ação da Funarte de grande visibilidade nacional. Inspirado no Projeto Seis e Meia, que acontecia no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, tinha como proposta a circulação de shows de música brasileira realizados por duplas: geralmente, um artista renomado e outro em início de carreira, ou que não fosse conhecido do grande público.
João Bosco e Clementina de Jesus, Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho, Jards Macalé e Moreira da Silva, Nana Caymmi e Ivan Lins, e Alceu Valença e Jackson do Pandeiro foram algumas das primeiras dobradinhas. Logo o lugar passou a receber também turnês individuais de artistas, como foi o caso de João Bosco com Tiro de misericórdia, em 1978. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Alceu Valença, Zé Ramalho, A Cor do Som, Ivan Lins, Luiz Melodia, Belchior, Hermeto Pascoal, Jackson do Pandeiro, Fafá de Belém, Raul Seixas, Célia, Sérgio Ricardo, e Elomar e Arthur Moreira Lima, que gravaram juntos lá o álbum Parcelada Malunga (1980), foram outros nomes que passaram pelo teatro. Em 1984, ele fechou as portas.
Kamille Viola é jornalista e pesquisadora musical. Autora do livro “África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver”, lançado pelas Edições Sesc.
Sobre Relicário: João Bosco (Ao vivo no Sesc 1978), leia também:
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